Especial Mês da Mulher 2020

Conheça os desafios que levaram Maria Eugênia Boscov a se tornar a referência nacional em geotecnia ambiental

Sua trajetória profissional acompanha a incorporação da preocupação ambiental nos projetos de engenharia, aspecto não considerado na época de sua formação. A engenharia não a conquistou à princípio, mas com o desenvolvimento de novos estudos, que exigiram muita dedicação e persistência, ela consolidou sua carreira em uma área hoje essencial para a sustentabilidade.

Maria Eugenia Gimenez Boscov nasceu em São Paulo, e estudou em uma escola tradicional da cidade até o momento de escolher sua profissão. Apaixonada pelos estudos, a decisão pelo curso de graduação gerou dúvidas, já que seus interesses iam da história às ciências exatas. Sua mãe de era descendente de imigrantes espanhóis e seu pai de imigrantes russos. Como a família do seu pai não possuía recursos, ele batalhou muito para conseguir se formar pela Escola Politécnica em engenharia civil, em 1954.  Ele foi o primeiro da família a ter ensino superior, amava a profissão e era um grande entusiasta. Portanto pareceu muito natural para ela, familiarizada com a profissão do pai, optar pelo curso de engenharia civil da Escola Politécnica da USP, no qual ingressou em 1977.

Sobre o período de graduação, ela fala com muito carinho sobre a riqueza da vida universitária, do apoio dos amigos nos estudos, nas viagens e intensa vida social e cultural e, claro, toda a liberdade característica da época. “Eu gostei da experiência universitária, eu tinha o sonho de entrar na USP, e só prestei vestibular para a USP”. O ambiente universitário era muito diferente do rígido sistema em que ela havia cursado o então colegial. “Eu poderia entrar e sair diversas vezes da sala, o quanto quisesse. E saía pelo gosto de poder fazer”, relembra ela com graça do que hoje, docente, acredita que atrapalha o andamento das aulas.

Quanto à Engenharia, não foi de primeira que profissão a conquistou. Sua expectativa era estudar disciplinas de exatas, e o curso mostrou que o exercício da profissão é muito diferente, e bem mais complexa que isso (Veja o box ao lado). Isso já gerou frustração. Um pequeno papel com o seu número de aluna da Poli, recebido na matrícula, era a sua única referência para se localizar como caloura, e cada um deveria buscar o local de suas aulas em grandes murais.  “Não conhecia ninguém, não sabia onde eram as salas de aula”. Com 17 anos e sem muita vivências e experiências anteriores, a jovem à princípio não se sentiu pertencente naquele ambiente, e se questionou se deveria mesmo persistir no curso. Somado a isto, um curso muito desafiador e teórico, a ideia de seguir carreira na área parecia muito distante. “Foi uma fase muito rica e ao mesmo tempo muito penosa na parte de formação profissional, o que me afastou da engenharia. Minha meta era me formar”.

A futura engenheira só começou a resgatar o gosto pela área a partir do terceiro ano da graduação, devido ao contato com as matérias profissionalizantes, e com o seu estágio no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Ela começou a gostar de estudar os solos em toda a sua complexidade, nas disciplinas da área de Geotecnia: Mecânica dos Solos, Obras de Terra e Fundações.  Para manter o vínculo com esta área após formada, ela começou a fazer algumas matérias de pós-graduação na área, e assim redescobriu o prazer de estudar. “Eu tinha passado cinco anos e meio me forçando a estudar para passar, e de repente era gostoso, eu queria ir bem porque queria aprender. Foi uma maravilha”.

Outro motivo que a levou para a pós-graduação, foi o fato de que seu primeiro emprego no Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) de São Paulo não era na Geotecnia. Ela ressalta que a equipe animada, e era muito prazeroso trabalhar com uma área inovadora que estava sendo implantada, mas mesmo assim o seu gosto pela geotecnia falou mais alto e ela seguiu com os estudos. “Quando me formei o Brasil estava em uma crise muito grande. Foi um ano muito ruim. O emprego que consegui foi em hidrologia e estatística. Era um grupo novo que estava sendo implantado para estudar as bacias de São Paulo, mas não era o que eu queria. Bem ou mal não era o que eu queria fazer, mas as pessoas era muito legais e empolgadas”. Outro ponto que ela destaca sobre esta época é que essa experiência lhe deu uma perspectiva legal do que era a engenharia.

Maria Eugênia conta que desde menina sempre sonhou em morar sozinha em outro país. “Nunca sonhei em casar e nem ter filhos. Amo meu marido, amo meu filho, são as grandes alegrias da minha vida. Mas eu não sonhava com isso. Meus pais sempre foram muito felizes, mas não fazia parte do meu show”. Quando apareceu uma oportunidade de trabalhar como pesquisadora por meio de um convênio entre a USP e a Escola Politécnica de Zurique (ETHZ), ela se inscreveu e partiu para a cidade suíça. “No dia em que eu desci em Zurique era um dia 1º de maio, o céu estava azul e as flores estavam brotando. Me buscaram o aeroporto, eu fui andando de carro por aquela cidade. Sabe um sonho que se realiza? Foi como quando nasceu o meu filho. Foi a mesma alegria. Sempre quis isso e estou aqui”.

Além do sonho realizado, a engenheira conta que foi uma experiência profissional muito boa. “O chefe na época me permitiu descobrir a pesquisadora que havia dentro de mim. Ele deixava você ter ideias e bater a cabeça. O que ele não tolerava era falta de iniciativa. Ele deixava você explorar e depois discutia com cuidado cada coisa”. Ela passou dois anos e meio na ETHZ, e recebeu uma proposta de passar mais quatro anos lá fazendo o seu doutorado. “Mas eu tive um acidente muito sério de ski, tive que fazer três cirurgias e minha família e trouxe de volta. Em dez minutos eu estava quebrada”. 

A necessidade de um longo tratamento para recuperação a trouxe de volta à São Paulo, abandonando aquele sonho, o namorado, o apartamento que tanto gostava. “De repente eu vim para o Brasil toda quebrada, com muitas dores, fazendo fisioterapia três vezes por dia, sem emprego. Foi muito ruim a volta”. Para continuar a se reabilitar, ela precisava de um emprego de meio período. Quando estava um pouco melhor, ela começou a trabalhar na Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia (FDTE), que ficava no prédio da engenharia civil da Poli, fazendo um banco de dados para as barragens do Estado de São Paulo, com análise de sistemas. “Um grupo muito bacana, todos matemáticos e engenheiros. Eu viajei por todas as barragens do Estado de São Paulo. Já estava perto da Geotecnia e voltei para a pós”.

Nesta fase, ela já tinha certeza que queria ser pesquisadora, e retomou o mestrado na Poli, agora com os conhecimentos e no projeto desenvolvidos na Suíça. “Quando acabava o trabalho eu ia trabalhar no laboratório”. Na primeira oportunidade de concurso para professor em tempo parcial, na área de Geotecnia, ela prestou e ficou em segundo lugar. Com a necessidade de um docente em tempo integral, ela foi convocada e assim deixou seu emprego na FDTE. “Devido ao período eleitoral eu não poderia receber salário, mas eu pensei: essa vaga eu não largo de jeito nenhum. Trabalhei de graça por nove meses”.

Ela começou seu doutorado estudando obras subterrâneas, especificamente em túneis. Porém o tema não a ganhou. “Em uma semana aconteceram duas coisas que me mostraram que havia um caminho maravilhoso. Eu estava trabalhando na hora do almoço, e chegou um visitante que queria falar com o coordenador do meu laboratório. Era um rapaz que trabalhava com túneis, e havia imigrado para o Canadá. Ele começou a falar sobre uma área que achei muito interessante, capsulamento de solos. No mesmo dia, um colega de sala, o professor Waldemar Coelho Hachich, voltou de um congresso científico na Austrália, e folheando os anais do evento, vi as primeiras coisas de área ambiental, como preparar terrenos para evitar contaminação em aterros sanitários”.

“Eu vi aquelas duas coisas e falei: é isso. Naquele momento eu decidi que iria abandonar túneis e ia fazer algo com isso”. Faltando apenas 2 anos e meio para o fim do seu doutorado, ela mudou de área, e o professor Waldemar Coelho Hachich apostou no seu projeto, se tornando seu orientador. “Foi uma loucura, eu pedi 6 meses de prorrogação e em três anos passei muitas noites trabalhando. Teve dias que as pessoas chegavam às 8 da manhã e eu ainda estava aqui, amanhecendo e eu estava no laboratório”. 

Não era apenas uma mudança de área de pesquisa. Ela optou por realizar um estudo totalmente inovador, que analisava como os contaminantes migram por solos tropicais. “Eu tinha só uma tese de uma pesquisadora do Rio de Janeiro, da UFRJ. Depois de montar um ensaio baseado em pesquisa bibliográfica, eu fui para o Rio tirar dúvidas com ela”. Com uma visita à pesquisadora Maria Cláudia Barbosa, um minicurso ministrado pela pesquisadora Chrysanthi Savvidou, um estudo de caso apresentado pela professora Dione Morita e com o apoio de uma professora do Instituto de Química, Elisabeth de Oliveira, ela concluiu seu estudo de doutorado sobre sistemas de contenção de resíduos perigosos nos solos, para que eles não atinjam os lençóis freáticos, por exemplo.

Maria Eugênia Boscov, é hoje pesquisadora da área de Geotecnia Ambiental, professora titular da Escola Politécnica da USP. Não foi sem enfrentar preconceitos de gênero que ela chegou onde chegou, entretanto, o apoio da sua família, amigos, colegas de profissão e mestres, e sua determinação e vontade de estudar a trouxeram a este ponto de sua carreira.

O cuidado e carinho com que ela lembra de cada pessoa que fez parte de sua trajetória saltam aos olhos. E isso fica muito claro até hoje, já que ela não faz distinção na hora de dizer sim para a participação de bancas e universidades de todo o País, não importando a distância. 

Ela se admira com a reverência com que é tratada Brasil afora, já que o cargo de professora titular se justifica e se baseia em toda sua admirável carreira e contribuições para sua área. Autora do livro “Geotecnia Ambiental”, muito estudado e citado nas instituições de ensino superior brasileiras, com simplicidade ela conta que criou a disciplina na Escola Politécnica. 

E não fica por aí, como uma verdadeira apaixonada pelos estudos, ela conta que não tem medo de se aproximar de novas áreas de estudo, mesmo que isso não a faça se aprofundar intensamente em uma em específico. Na verdade, ela parece gostar que essas novas possibilidades continuem a aparecer.

“Eu gosto de estudar, estudar é a minha vida, na verdade. A universidade é uma excelente oportunidade para estudar a vida toda. Trabalhei um pouco na iniciativa privada, mas nada se compara a estar aqui, para o meu perfil”.
Maria Eugênia Boscov
Professora Titular da Escola Politécnica da USP
Prédio da Engenharia Civil, da Poli, onde Maria Eugênia Boscov fez toda a sua formação superior.
O Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça. Fonte: https://cis.ethz.ch/

“Aptidão por exatas + escolha profissional = engenharia”?
Não necessariamente. Explicando o que é engenharia, Maria Eugênia Boscov conta por que esse pensamento pode levar à decisões frustradas

“Eu era muito boa em física e matemática, com um pai engenheiro. Na minha cabeça era um encadeamento natural fazer engenharia. Mas mesmo vendo o exemplo do meu pai, eu era muito nova e não via aquilo como algo que eu iria trabalhar depois, era mais umas matérias que eu iria estudar. Foi muito pela influência do meu pai e por essa ideia de que engenharia e exatas se casam”, conta Maria Eugênia, que decepcionou quando descobriu que a Engenharia não era o que ela esperava. 

“A escolha foi um pouco de desconhecimento do que era engenharia, que não é uma ciência exata. Na realidade as coisas não tem apenas uma resposta, são muito mais complexas. E cada vez mais entram novos parâmetros, como os sociais e ambientais, e que antes se considerava apenas a segurança estrutural e a economia. Mesmo em uma solução técnica, por exemplo em uma área contaminada, não existe apenas uma solução, existem várias técnicas. Qual é a mais adequada? Em alguns casos é óbvio, tudo indica que uma técnica é a mais apropriada, mas muitas vezes você tem várias opções. Não tem uma solução exata”.

“Hoje em dia eu gosto muito de engenharia, mas naquela época eu não estava preparada para decidir minha profissão pois essas coisas não passavam pela minha cabeça”, conclui.

Inspirações em outras lideranças
“A Mônica Porto estava fazendo doutorado, ela tinha se formado antes de mim. Sempre foi uma mulher muito inteligente, e eu achava bárbaro ver uma moça um pouco mais velha discutindo os aspectos técnicos com o chefe com firmeza. Fiquei encantada”.
Maria Eugênia Boscov
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