FORMANDO ENGENHEIROS E LÍDERES

Reator experimental usa luz para transformar urina em fertilizante

Projeto abre possibilidades de avanço na alimentação e no saneamento de comunidades fragilizadas enquanto caminha na trilha da sustentabilidade global

Em 1909, um novo método químico revolucionário modificou para sempre a indústria agrícola. Fritz Haber — cientista alemão — descobriu como sintetizar a amônia (NH3), uma molécula com alto teor fertilizante, a partir de nitrogênio e hidrogênio presentes no ar. A reação é considerada uma das mais importantes para o mundo moderno, pois a síntese permitiu que fertilizantes fossem produzidos e comercializados a preços menores, tornando a comida mais farta e acessível para a população. Prova disso é que a população mundial mais que quadruplicou após a industrialização do processo.

O gráfico demonstra como a razão entre o crescimento populacional e a produção de amônia artificial é diretamente proporcional. Imagem: [ResearchGate]

No entanto, ao longo do tempo, a reação de Haber-Bosch começou a mostrar as suas falhas. Hoje, a indústria que se baseia no processo é responsável pelo consumo de 1% de toda energia elétrica no mundo. E ainda emite mais de 451 milhões de toneladas de carbono por ano, o que pode representar até 3% de todas as emissões de CO2 no mundo. Isso ocorre pela alta pressão e temperatura necessárias para a realização da reação.

Por isso, cientistas e pesquisadores de todo o mundo estão tentando encontrar outras maneiras mais limpas e sustentáveis de realizar a produção artificial de amônia. Uma dessas pesquisas, liderada pelo professor William Tarpeh e conduzida pela sua aluna de doutorado Orisa Coombs, da Universidade de Stanford, descobriu como usar a energia solar para obter a substância e, ao mesmo tempo, tratar compostos tóxicos encontrados na urina. Divulgada no dia 19 de agosto de 2025, a pesquisa publicada na Nature Water desenvolve um protótipo de usina que usa painéis solares para separar a amônia dos dejetos, enfrentando dois problemas de uma só vez.

Impactos humanos e desenvolvimento

Grande parte da indústria de fertilizantes se baseia no Norte Global, como revelou Amilton Barbosa Botelho Junior, pesquisador da Escola Politécnica da USP, que integrou a equipe de cientistas responsável pelo projeto. De acordo com ele, essa concentração encarece o preço dos fertilizantes em países do Sul Global, região marcada por desigualdades no acesso a recursos materiais. A pesquisa ainda destaca que menos de 20% da população da África e da Ásia é conectada com estações centralizadas de tratamento de esgoto.

Amilton é graduado em engenharia química e fez Mestrado e Doutorado na Escola Politécnica da USP. Ele era pós-doutorado na Escola visitando a Universidade de Stanford na época da pesquisa, e atualmente atua como pesquisador no MIT. Imagem: [Amilton Botelho]

Essa disparidade revela diferenças notáveis entre o desenvolvimento humano e sustentável no planeta. No entanto, a usina construída pelos pesquisadores pode mudar isso. Ela permite que centros de tratamento sejam descentralizados, ao mesmo tempo que explora a urina como um recurso disponível em todo o mundo, conduzindo à uma maior descentralização, também, da produção dos fertilizantes.

A integração do projeto facilita a instalação da infraestrutura de saneamento básico em locais afastados de grandes centros de tratamento. E também permite essa instalação longe de redes elétricas. Ou seja, a usina pode ser usada em regiões remotas e  rurais. Ao mesmo tempo que promove uma segurança sanitária maior, o fertilizante obtido pode ser usado em plantações locais ou como uma fonte suplementar de renda.

A conversão da amônia em adubo ainda diversifica o mercado agrícola, fortemente marcado por multinacionais norte-americanas e europeias. Este processo, além de baratear o custo do recurso – que pode ser até duas vezes mais caro no mercado africano, como revela a pesquisa – também diminui as emissões de gases do efeito estufa, que são emitidas durante o transporte dos fertilizantes para regiões mais afastadas.

Amilton ainda destaca o potencial da usina no futuro energético. De acordo com o pesquisador, a amônia também é uma das principais fontes de hidrogênio verde, que se destaca como a forma mais limpa de obtenção de energia. A produção descentralizada facilita o transporte do hidrogênio e a oferta dele para mercados em diferentes regiões do planeta.

Transformando urina em amônia

Para obter esses resultados, o reator inventado pela equipe de cientistas precisou juntar processos eletroquímicos e separação por membranas. Basicamente, a urina é colocada em um compartimento, onde reage com o polo positivo do reator através de eletrodos conectados a uma bateria. A reação resulta na separação da amônio (NH4+), um grupo com carga elétrica positiva, do nitrato (NO3-) – principal composto que constitui a excreta humana. 

O próximo passo é retirar o amônio do meio e transformá-lo em amônia. Para isso, uma outra câmera contígua é preenchida com uma solução de cloreto de sódio (NaCl) – o sal de cozinha – e separada por uma membrana específica para cátions. Ou seja, por ela apenas passam compostos carregados positivamente, como a amônia. Assim, ela é levada para o segundo compartimento, separados a molécula e o dejeto humano.

Ao chegar, o amônio reage com o sal, que é transformado em amônia no estado gasoso. Para captá-la, é colocada uma terceira câmara, cheia de ácido e separada por uma membrana específica para gases. Ao atravessar essa membrana, a amônia reage com o ácido e se dissolve em uma solução de sulfato de amônia ((NH4)2SO4), que já pode ser usada como fertilizante.

No esquema pode se ver as três câmaras, com setas indicando o processo de passagem pelas membranas específica para cátions e específica para gases. Imagem: [Nature Water]

O processo de separação desenvolvido por Tarpeh e seus colegas já é revolucionário. Mas a principal conquista da pesquisa foi integrar o processo em uma usina autossuficiente, que usa painéis solares para suprir as demandas elétricas das reações químicas. “O objetivo era utilizar painéis solares como fonte de energia elétrica para os reatores”, detalha Amilton.

 

Calor e energia: os desafios dos painéis solares

 

Durante o desenvolvimento da usina, o grupo enfrentou dois problemas com o estabelecimento das usinas solares. “Um dos principais desafios era como conectar os painéis fotovoltaicos dentro do sistema eletroquímico”, de acordo com Amilton. A questão era quanto à própria geração por meio da energia solar, que varia de acordo com a hora do dia ou as condições climáticas.

A usina feita pelos cientistas combina técnicas químicas e elétricas para aperfeiçoar o mecanismo de remoção e captação da amônia. Imagem: [Amilton Botelho]

Para contornar essa questão, a equipe de cientistas modelou dois reatores. Um deles era ligado diretamente ao sistema, enquanto o outro era mediado por uma bateria. O segundo reator teve um funcionamento melhor ao longo do tempo, uma vez que regularizou a quantidade de energia disponível para a reação ao longo de todo o período.

 

O fornecimento por meio da bateria ainda permite que a energia seja dispensada em quantidades ideais. De acordo com a pesquisa, “correntes elétricas mais fortes levam a uma remoção e conversão mais rápidas do nitrogênio”, aumentando a eficiência da reação. A energia guardada ainda pode ser usada em outros aparelhos ou vendida, sendo uma fonte de renda extra para famílias vulneráveis.

 

Outro desafio foi regular a temperatura dos painéis solares, pois altas temperaturas diminuem a sua eficiência. Para regular o excesso, foi usado um sistema heliotérmico, ou seja, uma usina de energia solar que possui um captor para redirecionar o calor. O sistema refrigera a superfície do painel solar, aumentando a sua eficiência energética, ao mesmo tempo que usa a energia térmica na reação química.

 

Usar o sistema fotovoltaico-termal revelou-se essencial. A pesquisa aponta que a temperatura redirecionada foi diretamente responsável por aumentar a eficiência de produção. A temperatura elevada ajuda na etapa de conversão da amônia em sulfato, processo que, antes da descoberta, era o principal responsável por atrasar toda a reação.

As usinas heliotérmicas já são implementadas em diversas “fazendas solares”, uma vez que aumentam a eficiência dos painéis e, ao mesmo tempo, aproveitam a energia térmica. Imagem: [Wikimedia Commons]

Os dois principais desafios enfrentados pelos cientistas se tornaram duas maneiras de tornar a reação ainda mais produtiva. Ainda assim, outros problemas não solucionados se impõem para o projeto. Por exemplo, são necessários pelo menos 7.6 milhões de litros de urina para a produção equivalente a uma pequena planta industrial que utiliza o método Haber-Bosch, aponta a pesquisa.

 

A necessidade de mais estudos socioeconômicos para calcular as despesas variáveis, como a implementação de usinas heliotérmicas e a obtenção de produtos químicos, ou a eficiência ainda inferior à reação de Haber-Bosch, são mais obstáculos para tornar o modelo completamente viável.

 

O uso de usinas em Palo Alto, Oklahoma City e Campala

 

A autossuficiência promovida pelo uso de painéis solares permite que a usina seja instalada em praticamente qualquer lugar. De acordo com Amilton, o projeto possibilita que áreas sem saneamento básico consigam não apenas instalar um método de tratamento de esgoto, mas também produzir fertilizantes, sabendo que muitos desses lugares são rurais e usam a agricultura como principal forma de sustento.

 

Para comprovar essa hipótese, os cientistas colocaram a usina para teste. Foram feitas simulações ao ar livre e simulações em ambientes internos, com controle de luz. O intuito era reproduzir as condições ambientais do verão e do inverno de Palo Alto e Oklahoma City, nos Estados Unidos, e de Campala, capital da Uganda.

Situada quase acima da linha do Equador, Campala recebe uma média diária alta de energia solar ao longo do ano, favorecendo o uso de usinas heliotérmicas. Imagem: [Wikimedia Commons]

As projeções mediram a recuperação de amônia e a rentabilidade que as usinas poderiam ter, considerando a revenda do fertilizante e da energia guardada menos o custo da eletricidade para operar o sistema. Os resultados mostraram que as usinas em Palo Alto e Oklahoma City renderiam de um a dois dólares por quilograma de fertilizante produzido. Já em Campala, a produção pode render mais de quatro dólares por quilograma produzido, devido ao maior preço dos fertilizantes e da eletricidade.

 

Esses resultados demonstram a possibilidade de implementar as usinas em regiões economicamente desfavoráveis e com pouco acesso a recursos materiais. Isso permite a descentralização das estações de tratamento de esgoto e a diversificação do mercado de fertilizantes, especialmente no Sul Global. Revertendo os problemas de desigualdade no acesso à infraestruturas de saneamento básico e eletricidade, assim como possíveis preços abusivos do mercado agrícola.

 

Tarpeh Lab e o futuro do projeto

 

Além do uso local, as usinas ainda podem ser usadas em estações centrais de tratamento de esgoto. De acordo com Amilton, a integração do projeto com grandes redes de saneamento é um dos objetivos do Tarpeh Lab, um grupo de pesquisa que reúne cientistas de diversas áreas para repensar a maneira como o esgoto é tratado. Amilton destacou que a meta do grupo é “Transformar todos os efluentes ou resíduos em materiais utilizáveis, em produtos diversos”.


Em seu site, a missão do Tarpeh Lab é explícita. Por meio de várias frentes, eles desafiam o sistema atual de tratamento de esgoto, formulando diversas estratégias e sistemas que melhorem a eficiência dessas redes. A pesquisa e o desenvolvimento do reator é apenas um dos projetos do grupo em direção a uma economia circular do saneamento.

William Abraham Tarpeh é graduado em Stanford, com mestrado e doutorado pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. Imagem: [Tarpeh Lab]

De acordo com Amilton, antes da sua entrada na pesquisa, Tarpeh e outros pesquisadores já haviam desenvolvido o mecanismo de separação da amônia, e já estavam testando o fertilizante obtido em pequenas plantações, provando que o produto obtido era próprio para utilização. Os próximos passos para o desenvolvimento da usina, de acordo com o pesquisador, envolve juntar outras linhas de pesquisa para chegar na meta maior. “Eu vejo que no futuro desse projeto, em particular, é preciso juntar outras técnicas para poder chegar no objetivo, que é bater o consumo energético do processo Haber-Bosch, e conseguir escalonar isso”.

 

Amilton acabou sendo inserido na pesquisa para aprender mais sobre eletroquímica e separação por membranas. O projeto faz parte da Bolsa Estágio de Pesquisa Exterior, um financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O estágio que realizou em Stanford é apenas uma parte da sua formação, o pesquisador está no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), pela Universidade de British Columbia, no Canadá, e pela Universidade de Queensland, na Austrália.


Já o seu futuro envolve outros caminhos. O cientista assume uma vaga como professor associado na Noruega (Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia – NTNU), mas o projeto teve impactos profundos na sua formação científica. Ele deseja ampliar os estudos sobre o tratamento de subprodutos industriais e efluentes da mineração. Assim, conseguindo contribuir para as pesquisas na recuperação de recursos em resíduos descartados e considerados sem valor, como as feitas pelo Tarpeh Lab.