Navegar:
Centro Virtual de Cultura Marítima
Bem-vindos(as) à área de embarcações tradicionais
Aqui você encontra informações sobre as embarcações mais emblemáticas do brasil e do mundo
Jangada para pesca, Praia de Peroba, Icapuí - CE. Acervo da Fundação Brasil Cidadão: Foto de Tibico Brasil
Símbolo maior da cultura marítima nordestina, em especial do litoral cearense, a jangada é uma embarcação artesanal tradicional da região, mas que pode ter sua origem traçada nas histórias e contos milenares. De grande relevância para a sociedade e economia do litoral nordestino, é uma embarcação propulsionada à vela, com casco de madeira em forma achatada, sem quilha, com convés e um pequeno porão acessado por uma escotilha. Seu controle é feito pelo uso combinado do leme, ou remo de governo, vela e bolina (Bernhard, 1977; Bezerra, 1992; Assad, 1997) – para melhor entendimento de cada um desses componentes, ver Elementos de navegabilidade. Classificada como embarcação miúda e com dimensões que variam, em média, de 5 a 8 metros na maior extensão, por 1 a 1,6 metros na menor extensão, é uma embarcação que leva geralmente de 3 a 5 pessoas.
A concepção da jangada como a conhecemos hoje provém da união dos saberes nativos indígenas com as influências dos colonizadores europeus. Seu feitio, realizado por mestres carpinteiros artesanais, é uma arte passada de geração em geração que muitas vezes é considerada como uma habilidade inata. Trazendo destaque aos saberes populares, historicamente marginalizados, a jangada é uma embarcação exemplo da excelência e validade das técnicas empíricas tradicionais tais quais as dos mestres artesãos.
Origem e História
A jangada reflete, assim como o próprio Brasil, uma mistura de saberes indígenas e das influências trazidas pelos colonizadores. Apesar de ser um ícone brasileiro, especialmente no litoral do Ceará, sua origem é transcontinental.
A Etimologia do Nome: da Índia ao Brasil
De acordo com o historiador Luís da Câmara Cascudo em seu livro Jangada: uma pesquisa etnográfica (2002), os portugueses encontraram na Índia uma pequena balsa, denominada “janga”, que consistia de três a quatro paus amarrados com fibras vegetais ou seguros por madeira em forma de grade. Derivado do tâmil – língua de origem dravidiana (família de línguas de grupos étnicos no sul da Índia) – e popularizado pelos malaios (grupo étnico austronésio do Sudeste Asiático), o vocábulo “janga” designava uma embarcação simples. A versão maior, com cinco ou seis paus, de nome “Jangada” (Changadam), foi encontrada pelos portugueses durante as lutas pelo domínio das Índias Orientais, e seu nome é formado pela composição da palavra “janga” e do aumentativo “ada”, ou seja, janga maior.
Quando chegaram ao Brasil e se depararam com as balsas indígenas “Piperi” ou “Igapeba”, que possuíam notável semelhança com as jangadas orientais, os colonizadores aplicaram a elas o nome que já lhes era familiar, transferindo o termo asiático para a embarcação indígena.
Antes do conhecimento da verdadeira jangada nas Índias Orientais, os portugueses se referiam à embarcações do tipo como “Bastida”, nome registrado por frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo em seu Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram em sua primeira versão de 1798-99. O nome Bastida significava simplesmente uma tábua ou pau transversal segurando os troncos, tornando-se uma balsa.
Conforme aponta Câmara Cascudo, o primeiro significado documentado para a palavra “jangada” em língua portuguesa é o de uma construção improvisada após um naufrágio. Este registro foi feito em 1586 por Frei João dos Santos, em sua obra Etiópia Oriental, Volume 2. Mas, apenas um ano depois, no Brasil, o cronista Gabriel Soares de Souza já empregava o vocábulo para designar as embarcações indígenas igarapebas e piperis.
No entanto, em relação à sua origem, sua indubitabilidade foi estabelecida em linhas decisivas por João Ribeiro em seu livro Curiosidades Verbais: estudos aplicáveis à língua nacional (1963): “A jangada é de origem asiática. Na Índia os ingleses chamam-na jangar e o termo deriva da língua malaiala xangadam e mais remotamente do sânscrito sanghata, com o sentido de ligagem ou união de tábuas flutuantes ou de canoas ajougadas. Os portugueses que serviam na Índia e no Brasil para cá trouxeram o vocabulário, que correspondia perfeitamente à igarapeba dos tupis do norte, entre a Bahia e o Maranhão.”
Os Primeiros Registros e o Olhar Europeu
O primeiro registro documental da jangada no Brasil deu-se em 26 de abril de 1500, na célebre carta de Pero Vaz de Caminha. Nela, o cronista descreve o que viu após a primeira missa: “E alguns deles se metiam em almadias — duas ou três que ali tinham — as quais não são feitas como as que eu já vi: somente são três traves, atadas entre si”. O autor português havia registrado a Piperi ou Igapeba dos tupis, ainda desconhecendo o futuro nome malaio de Jangada. Apesar de bem diferente, o cronista comparou-a com a Almadia, que é uma canoa monóxila, estreita e comprida, conhecida pelos portugueses das costas da África.
Outros cronistas do século XVI ajudaram a pintar o retrato inicial da embarcação. Jean de Lery, que chegou à Baía da Guanabara em 1557, registrou o uso dessas balsas com o próprio nome local de Piperis. Contudo, foi Pero de Magalhães Gandavo quem primeiro utilizou o termo “Jangada” em português para descrever a embarcação brasileira, consolidando o nome que perdura até hoje. Em seu livro Jangadas, de 1985, Nearco Barroso Guedes de Araújo afirma que o primeiro registro descritivo e completo, fazendo alusão à jangada que conhecemos hoje em dia, com vela latina, bolina e remo de governo, foi feito por Henry Koster na costa de Pernambuco apenas no século XIX.
Foram muitos os nomes dados à embarcação que hoje conhecemos como jangada, com sua maioria já desaparecidos da linguagem usual. De acordo com Cascudo (2002), são conhecidos os nomes:
- Jangada: jangada-de-vela, jangada do alto;
- Paquete: jangada menor;
- Ximbelo: jangada com dimensões inferiores ao Paquete. De madeira aproveitada;
- Bote ou Catraia: jangadinha;
- Burrinha: jangada pequena. “As jangadas pequenas, que usam de uma só vela, são chamadas burrinhas”, Almirante Alves Câmara. Ensino sobre as construções navais indígenas do Brasil. 1888, segunda edição em São Paulo, 1937, p. 29;
- Candandu: jangada velha (Alberto Vasconcelos. Dicionário de Ictiologia e Pesca. 1938);
- Igapeba: citada em Marcgrav, Joan Nieuhof, etc. Séc. XVII;
- Piperis: citada em Jean de Lery (séc. XVI);
- Catre: espécie de jangada (Alberto Vasconcelos);
- Caçoeira: pequena jangada que leva a rede caçoeira em pesca noturna.
Jangada de Apeiba, PE. Ilustração de Henry Koster, Travels in Brazil, 1816
A História e os Mitos
Considerando a origem asiática da embarcação e os relatos dos cronistas europeus, é inegável afirmar que a existência da jangada é antiga. Contudo, há relatos de que sua utilização é ainda mais antiga, perdendo-se nos mitos e histórias milenares, tendo sido empregada pelos gregos e romanos, além das campanhas militares dos germanos e gauleses. A jangada também está presente em um dos poemas narrativos mais conhecidos do mundo ocidental, a Odisseia, como meio de fuga da ilha Ogígia por Ulisses, cantado por Homero no canto V (HOMERO. Odisseia: edição comentada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2023):
“Tudo Odisseu perfurou e depois ajustou as madeiras
umas às outras, martelando as cavilhas e as travessas.
Equivalente ao tamanho de uma ampla nau de carga
torneada por um homem entendedor de carpintaria
era a ampla jangada que Odisseu construiu. Montou a coberta
com vigas perto umas das outras; e terminou a construção
da jangada revestindo-a com tábuas compridas.”
Pelos cantos de Homero, Ulisses (em latim, ou Odisseu, em grego) escapou da ilha de Ogígia, onde era mantido cativo pela ninfa Calipso, por meio de uma jangada, construída pelo próprio rei de Ítaca com ajuda divina.
A Jangada e sua Presença no Brasil
É nítido que a jangada, por mais que tenha passado por transformações até se tornar a embarcação de madeira com a qual estamos habituados, está presente na história muito antes da sua relação e identificação com a tradição do nordeste brasileiro. Contudo, a jangada se tornou um aspecto tão enraizado na cultura nordestina que José de Alencar, patrimônio da literatura brasileira e cearense ilustre, inicia e conclui o romance Iracema com alusões à jangada, ou, como o próprio escritor diz, “frágil lenho”. Surge, então, a pergunta: como se deu o surgimento do simbolismo da jangada no nordeste brasileiro?
Uso e Funções
Originalmente concebida para a pesca, a jangada hoje navega em duas vertentes principais: a da tradição pesqueira e a do turismo, que lhe oferece uma nova sobrevida, em conjunto com novas normas e atenções.
A Pesca Artesanal: A Vocação Original
A jangada é a ferramenta por excelência da pesca artesanal em uma vasta faixa do litoral nordestino, tradicionalmente com atuação em Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. A embarcação permite tanto viagens curtas de pesca, com o retorno ao final do mesmo dia, como viagens mais longas, que podem durar até cinco dias no alto-mar.
Conversas realizadas pela equipe do projeto Navegar com os mestres carpinteiros navais de Icapuí revelaram que a jangada hoje em dia é muito utilizada como embarcação “introdutória” e temporária para aqueles que desejam iniciar a prática de pesca artesanal, ou para pescadores mais velhos que buscam retornar para casa no mesmo dia. Por ser uma embarcação menor e mais rápida, acaba sendo um bom ponto de partida para os jovens pescadores aprenderem o ofício, ao mesmo tempo que permite que os pescadores mais experientes continuem exercendo o ofício de forma menos exaustiva.
Passeio e Turismo: Demanda Crescente
Nos últimos anos, as jangadas vieram perdendo espaço no cenário da pesca artesanal, com os pescadores buscando embarcações maiores que garantem mais conforto e possibilitam a coleta de uma maior quantidade de pescado. Por outro lado, com o crescimento recente do turismo no litoral do Nordeste brasileiro, muitos jangadeiros transitam da pesca artesanal para o turismo, fornecendo passeios de barco em suas embarcações.
Um dos mestres carpinteiros de Icapuí, Heverton de Chico de Doninha, afirma que, apesar do casco e da montagem inicial serem os mesmos, as jangadas de passeio são diferentes das jangadas tradicionais, uma vez que não possuem espaço para a vela, tendo seu convés coberto e ocupado por bancos para os passageiros, e são movidas a motor. Inevitavelmente, devido ao crescimento do turismo na região, as embarcações para passeio possuem uma fiscalização maior por parte da Marinha, como para verificar a capacidade de pessoas e o peso que suportam, justamente por transportarem turistas.
Fonte: Acervo da Fundação Brasil Cidadão
A Jangada e a Cultura
Fonte: Acervo pessoal
Com protagonismo no litoral nordestino do Brasil, a jangada marca presença na cultura da região, especialmente em relação às práticas e tradições do homem do mar, sendo considerada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como um bem cultural. Além disso, também se manifesta na sua representação em obras artísticas que a elevaram ao status de ícone nacional.
A Cultura como Tradição: O Saber-Fazer do Homem do Mar
Profissionais do empirismo, o ofício de jangadeiro e carpinteiro naval geralmente é herdado. “O jangadeiro é filho de jangadeiro. Um por mil, não tendo a profissão fixada na família, escolhe a jangada para viver”, é como resume Cascudo (Jangada: uma pesquisa etnográfica, 2002). Usualmente nascidos à beira do mar e ajudando, desde criança, o pai a montar a jangada, levá-la ao mar e acompanhá-lo durante os dias de pesca, os saberes e práticas são passados de geração para geração, transferindo o conhecimento de construção das jangadas e as minúcias de sua utilização de maneira infalível e natural.
Por meio de saberes puramente empíricos, derivados do “ver e fazer”, do teste até funcionar ou, como já abordado, da transmissão de conhecimento entre pai e filho, os carpinteiros navais artesanais são aqueles que, por meio de suas mãos e saber, materializam embarcações sem precisar recorrer às técnicas formais utilizadas pela engenharia naval acadêmica, como análise de resistência ao avanço, cálculos de estabilidade e demais procedimentos técnicos. Esse saber cria uma tradição que envolve a própria construção de embarcações artesanais, tais como as jangadas.
Segundo o estudo realizado pelo pesquisador Miguel Braga (2013) sobre embarcações a vela do litoral do Estado do Ceará, a análise do perfil dos 36 carpinteiros entrevistados em sua tese revela uma força de trabalho envelhecida e de vasta experiência. A média de idade geral dos entrevistados é de 62,6 anos, sendo de 59,0 anos para aqueles ainda em atividade, o que indica uma dificuldade de renovação geracional. O tempo médio de dedicação à profissão é de 36,1 anos, um testemunho da profunda experiência acumulada por esses mestres.
Contudo, a característica mais marcante deste perfil é o profundo paradoxo entre a baixa escolaridade formal e a alta sofisticação do conhecimento técnico. Os dados são notáveis: 42% dos entrevistados são analfabetos e outros 44% são classificados como alfabetizados, mas com conhecimento rudimentar de leitura e escrita. Nenhum dos 36 artesãos frequentou qualquer curso de capacitação técnica na área de construção naval, nem sequer em carpintaria ou marcenaria.
Esta ausência de instrução formal é compensada por um sistema de conhecimento alternativo, baseado na “capacidade de observação, da versatilidade e de outras habilidades como planejamento, senso de proporção, visão espacial e de perspectiva geométrica” (Braga, 2013). A complexidade deste conhecimento é tal que o renomado velejador Amyr Klink, ao estudar as embarcações cearenses para o projeto de seu barco Parati II, descreveu os construtores como “grandes engenheiros navais sem diploma que conseguem construir coisas muito à frente”. Todo o processo construtivo, desde as dimensões gerais até os mais complexos detalhes de encaixe, é armazenado na memória, sem o auxílio de registros escritos ou desenhos técnicos.
A marginalização desses artesãos pelo sistema educacional formal não impediu o desenvolvimento de um corpo de conhecimento altamente eficaz e adaptado, fundamentado na prática repetida, na observação direta e na transmissão oral da técnica. A total dependência da memória e da transmissão interpessoal torna o saber extremamente adaptado às condições e aos materiais locais, mas, por essa mesma razão, torna a sua continuidade excepcionalmente frágil. Se a cadeia de transmissão de mestre para aprendiz for interrompida pela falta de interesse das novas gerações, o conhecimento se perde de forma irremediável. A preservação deste ofício, portanto, não pode se limitar à documentação de projetos ou embarcações finalizadas, como planos de linhas. É crucial valorizar e documentar o processo de conhecimento empírico em si, a lógica interna que guia as mãos do mestre.
A habilidade inata da carpintaria artesanal
Para Olismar, carpinteiro naval de Icapuí, a habilidade de construir embarcações é algo inato, que “já vem no sangue”, um “desenho na cabeça” que não pode ser forçado, exigindo muita vontade e um interesse genuíno para aprender. Ele e sua equipe trabalham “só na cabeça”, sem a necessidade de projetos técnicos ou medições complexas, baseados em um conhecimento intuitivo de proporções.
Heverton de Doninha também descreve o ofício como um “dom de Deus” e um conhecimento transmitido de pai para filho. Ele, inclusive, demonstra que realizou pontuais inovações pessoais, criando peças específicas nas embarcações, ideias que surgiram de sua cabeça com a certeza de que dariam certo: “ ”. Dedé de Zé de Liliza, mestre artesão e conhecedor da história local de Icapuí, reforça a ideia de que a construção é um trabalho “de cabeça”, que se adapta ao desejo do cliente sem a necessidade de desenhos. Ele aponta para a “irreprodutibilidade tecnológica” desse saber, o que torna essa tradição ainda mais valiosa e frágil.
“Ainda não descobriram uma tecnologia para fazer
um barco artesanal e não vão descobrir nunca”
– Dedé de Liliza
A Transmissão do Saber: Uma Herança
A perpetuação deste ofício durante séculos só foi possível devido à difusão desse saber. Apesar de relevante, a arte da carpintaria naval não é estritamente transmitida por influência familiar: dos entrevistados por Braga, 22,2% (8 de 36) aprenderam a profissão diretamente com seus pais. Considerando, no entanto, a influência familiar de forma mais ampla, incluindo tios, avós e irmãos, o percentual sobe para 36,1%, indicando a relevância deste vetor de transmissão do saber. Outros núcleos de difusão do conhecimento são o aprendizado por meio de um “construtor local”, sendo a mais comum (38,9%), ou simplesmente “observando fazer” (22,2%). O restante dos entrevistados (2,8%) alegou ter aprendido por meio de carpinteiros de outro local.
As motivações para ingressar na profissão são, em sua maioria, pragmáticas e ligadas às necessidades da vida no litoral: a demora para se conseguir um carpinteiro para consertar a própria embarcação, a baixa renda obtida na pesca que impulsiona a busca por uma atividade complementar, ou uma iniciação gradual através da execução de pequenas tarefas de rotina. No entanto, a continuidade desta tradição está gravemente ameaçada. Relatos mais recentes apontam para um desinteresse generalizado dos jovens, que preferem estudar e buscar outras carreiras, vistas como mais promissoras e menos árduas.
Desafios na Transmissão do Ofício
A transmissão do saber de carpintaria naval enfrenta desafios significativos, de acordo com as conversas realizadas em Icapuí. Heverton de Doninha, por exemplo, ensina apenas seu filho e não tem interesse em ensinar a outras pessoas, temendo problemas legais ou concorrência. Ele afirma que, se o filho não continuar o ofício, o trabalho “para em mim”. Essa restrição familiar reflete a dificuldade de encontrar novas gerações interessadas no trabalho.
No caso de Seu Evilásio, um dos pioneiros na construção naval artesanal de Icapuí, o mestre artesão fez um esforço consciente para passar o ofício aos cinco filhos, garantindo que o legado familiar e a tradição continuem, embora os incentivasse a estudar. É evidente a preocupação de Evilásio com a profissão dos filhos, garantindo que os mesmos possam seguir no ofício de carpinteiro naval, caso não tenham sucesso nos seus estudos. Dedé de Liliza também reconhece a urgência de preservar o conhecimento: apesar de o trabalho ser duro, ele tem um forte desejo de reabrir uma escola de construção naval para preservar essa tradição, recordando-se de um projeto de sucesso do UNICEF que, no passado, formou 60 alunos.
O ofício é fisicamente exaustivo, exigindo uma constante renovação de gerações, para a continuidade da profissão. Olismar, por exemplo, descreve a profissão como “pesada”, que “força” o corpo, e já lhe causou hérnia de disco. Ele observa que “não é todo mundo que quer aprender”, justamente devido ao caráter exaustivo e pesado do ofício, e que a maioria dos carpinteiros não consegue exercer a profissão por um longo período devido às exigências físicas. A contradição entre o depoimento de Olismar com os dados da tese de Braga (média de 36,1 anos exercendo a profissão) revela justamente a dificuldade que os carpinteiros navais enfrentam em se aposentar, muitas vezes ultrapassando os seus limites físicos devido ao desinteresse das novas gerações em sucedê-los no ofício.
A Jangada na Arte
A força simbólica da jangada transbordou para a cultura nacional, sendo imortalizada em diversas formas de arte. Os exemplos a seguir são ilustrativos:
- Literatura: O cearense José de Alencar, em sua obra-prima Iracema (1865), utiliza a imagem da jangada para emoldurar o romance. O livro se abre e se fecha com Martim em um “frágil lenho”, que simboliza a jangada.
- Cinema: O caso mais emblemático é o filme inacabado It’s All True, de Orson Welles. Em 1941, o cineasta ficou fascinado com a notícia da viagem dos jangadeiros Manuel “Jacaré” e seus companheiros que, com a jangada São Pedro, navegaram do Ceará ao Rio de Janeiro para reivindicar direitos trabalhistas ao então presidente Getúlio Vargas. No ano seguinte, em 1942, Welles iniciou as filmagens da reconstituição da saga, mas o projeto foi marcado por um desfecho trágico: a morte do próprio Jacaré, que se afogou durante as filmagens no Rio de Janeiro. (Para saber mais, leia o artigo A saga de Jacaré e a jangada São Pedro no site Mar Sem Fim).
- Música: A jangada inspira canções que se tornaram simbólicas para a cultura nordestina. “Mucuripe”, de Raimundo Fagner e Belchior, e “Suíte do Pescador”, de Dorival Caymmi, são alguns dos exemplos, que evocam a beleza e a dureza da vida no mar.
- Pintura: A jangada também constitui um elemento significativo na iconografia da arte brasileira. Candido Portinari, por exemplo, reconhecido como um dos grandes nomes da pintura brasileira, representou a embarcação em sua obra Jangadas do Nordeste (1939), transferindo para a tela o tema e a figura do jangadeiro.
Espaços de Memória
Tradicionalmente, Icapuí tem na pesca uma de suas principais atividades econômicas, o que impulsionou a construção artesanal de barcos. Nesse cenário, destaca-se o Seu Evilásio que, tendo construído com seu irmão um dos primeiros barcos de Icapuí há pouco mais de cinquenta anos, é proprietário de um dos maiores e mais famosos estaleiros do município. Hoje conduzido pelos seus filhos e netos, o local conta a história de uma família que é referência na carpintaria naval e possui tamanha relevância para Icapuí, que o Estaleiro de Seu Evilásio é reconhecido como um importante ponto turístico do município, sendo divulgado no site da própria Prefeitura “Turismo Icapuí”.
Além disso, locais como a Casa de Cultura Cores da Vida (também em Icapuí), idealizada e fundada por Dedé de Liliza, refletem a importância e impacto cultural que a embarcação tem no município. Este espaço é uma homenagem viva à história, memória e identidade da comunidade local. Dedé criou diversos espaços afetivos, como o Salão João Sabino, que evoca os forrós de antigamente, e o Memorial José Leni, para vivenciar a história. Em uma vela de jangada, ele homenageia os pescadores artesanais que já faleceram, reforçando a jangada como um símbolo central da identidade local.
Ver: “Um Tour pela Casa de Cultura Cores da Vida”, vídeo da Prefeitura de Icapuí, 2 de fevereiro de 2022.
Acervo da Fundação Brasil Cidadão: Barreira da Sereia, Icapuí - CE
Construção
A construção das jangadas ocorre através de um processo artesanal que foi aperfeiçoado ao longo do tempo, ainda que seguindo as tradições seculares transmitidas de geração a geração por mestres jangadeiros. Extremamente baseada no conhecimento empírico, o feitio da jangada difere em diversos aspectos da construção de embarcações de maior porte, ou até mesmo das embarcações motorizadas. Das tradicionais jangadas de piúba às modernas jangadas de tábua, o feitio, elementos, semelhanças e diferenças desses principais tipos de jangada serão abordados neste tópico.
Jangada tradicional de pau, foto de João Lara Mesquita, 23 de dezembro de 2017, https://marsemfim.com.br/jangada/
Jangada tradicional de “pau” ou piúba
De acordo com Araújo (Jangadas, 1985), a jangada de pau ou piúba consiste basicamente em um estrado ou flutuador (que pode ser chamado, de maneira grosseira, de casco), de um velame (vela, mastro, retranca, tranca), lemes (remo e bolina), espeque e bancos.
Como o próprio nome diz, o casco desse tipo de jangada é formado por toros de piúba armados longitudinalmente e fixados transversalmente entre si por cavilhas de pau-ferro. As primeiras jangadas, por sua vez, faziam essa fixação dos toros através de nós de cipós.
Por mais que este método de estruturação não traga nada muito novo, o que realmente caracteriza o casco da jangada de piúba é o corte das extremidades dos toros (popa e proa) em formato “bico de gaita”, para melhor cortar a água.
Araújo também comenta que no Ceará, em especial nos portos de Grande Fortaleza, há uma singularidade na forma da construção das jangadas: os toros não são utilizados “in natura”. Ou seja, além do corte e do aparo das extremidades, os primeiros terços médios, proa e popa, são cortados com corte vertical e transverso, em forma de cunha, posteriormente remendados de modo a criar no plano horizontal uma concavidade e, em vista superior, a necessária convergência (encurvamento) na direção da proa, criando melhores condições de navegabilidade.
Com toros de cinco a oito metros de comprimento, são escolhidos, dois a dois, por suas espessuras para comporem o casco da jangada. Os pares de “meios” devem ter circunferências de 1,00 a 1,20 metros; os “bordos” de 1,30 a 1,60 metros e de “mimburas” entre 1,30 e 1,40 metros. Ao que tudo indica, essas medidas não sofreram variações significativas através do tempo.
Os termos “meios”, “bordos” e “mimburas” significam nada mais do que a posição e disposição dos pares de piúba no estrado da jangada. Tipicamente feita com seis toros, os dois no centro são chamados de “meios”, os dois seguintes, dispostos simetricamente, têm nome de “bordos”, e os dois na extremidade são chamados de “mimburas”.
A forma como os toros da jangada são organizados é pensada para melhor fluidez ao navegar. Essa disposição cria uma característica técnica fundamental para a sua navegabilidade nas ondas: em vez de resistir à água, o casco permite que ela entre pela proa e escoe livremente pelas madeiras. O casco da jangada não briga com a água, sendo projetado para que ela o percorra livremente.
Durante o processo de construção das jangadas de piúba, os toros são colocados sobre outros dois transversais chamados de “maia”, que são colocados intencionalmente um mais abaixo que o outro, de modo que a proa fique sempre mais alta que a popa. Quando construída dessa maneira, pode-se dizer que é uma jangada “selada” e ideal.
Vista superior do casco de uma jangada. Figura do livro Jangadas, de Nearco Barroso Guedes de Araujo, 1985.
Jangada de tábuas
De acordo com Câmara Cascudo (Jangada: uma pesquisa etnográfica), as primeiras jangadas de tábua surgiram por volta de 1940 no Rio Grande do Norte, mais precisamente, no Rio do Fogo e em Genibaú, concebidas por José Monteiro e José da Cruz, respectivamente. No Ceará, seus primeiros fabricantes foram Possidônio Soares e, posteriormente, Possidônio Filho, de acordo com depoimentos colhidos por Araújo (Jangadas, 1985) do jangadeiro e construtor Francisco José Maria (“Chico Turco”), nascido no Rio Grande do Norte. Outros nomes como Wilson Bindá (marinheiro aposentado), Aloísio Apolônio, Eduardo “Catarinense” (filho de alemães) e o lagosteiro americano Senhor Morgan também foram mencionados como participantes na fabricação desse novo tipo de jangada, contribuindo de maneira mais discreta ou até mesmo indireta.
Apesar de sua forma achatada, a jangada de tábuas preserva as condições e características da construção da jangada tradicional de piúba, de modo que, externamente, chega a se assemelhar com a jangada de pau. Variando entre 1,60 a 1,80 metros de largura por 6 a 8 metros de comprimento, também praticamente preserva as dimensões das jangadas de piúba, apenas com aprimoramentos no “talho e acabamento”.
Além da forma achatada, outros diferenciais para o modelo mais moderno de jangada constam na introdução de uma escotilha: uma abertura retangular sobre o convés com tampa em forma de caixa, pela qual se alcança o porão, onde são guardados utensílios e mantimentos. O porão também proporciona descanso aos jangadeiros na pesca em alto-mar, que pode chegar a durar de quatro a cinco dias (ARAÚJO 1985); a geladeira ou caixa térmica, com dimensões de 0,65 x 0,70 x 0,70 metros, que é uma caixa de madeira revestida externamente por zinco ou flandres e internamente com isopor para a preservação de pescados no gelo; e por fim, a adição de um leme, utilizado quando o nível da água permitir, que nada mais é do que uma pesada prancha articulada por dobradiças com pinos e a cana do leme (um cabo removível). Estas adições e inovações contribuem e facilitam bastante a utilização das jangadas por pescadores: a escotilha e geladeira possibilitam, principalmente, períodos mais longos de pesca em alto-mar, e o leme auxilia na manobrabilidade da embarcação.
Jangada de tábuas. Figura retirada do livro Jangadas, de Nearco Barroso Guedes de Araujo, 1985.
Elementos do casco da jangada de tábuas. Figura do livro Jangadas, de Nearco Barroso Guedes de Araujo, 1985.
O leme da jangada de tábuas. Figura do livro Jangadas, de Nearco Barroso Guedes de Araujo, 1985.
Elementos de navegabilidade
Semelhantes tanto para as jangadas de piúba como de tábuas, os demais elementos constituintes das jangadas têm grande importância para a navegabilidade da embarcação, auxiliando na direção, manobrabilidade, velocidade e parada da jangada. São eles: banco de vela, bolina, espeque, banco de governo, calçadores, vela e tranca. Nearco Barroso Guedes de Araujo em seu livro “Jangadas” descreve tais elementos de maneira clara e explicativa, utilizando de ilustrações que conseguem representar muito bem as minúcias das jangadas.
Elementos da jangada - imagem retirada do site Jangada Journey link: https://jangadajourney.com/glossary/banco-da-vela/
Banco de vela
Uma das estruturas principais na embarcação, o banco de vela é responsável pela sustentação e ajuste da posição do mastro e, consequentemente, da vela da jangada. É fundamental para a navegabilidade e manobrabilidade, pois permite a adaptação às condições de vento e navegação, permitindo o melhor aproveitamento do vento e flexibilidade da embarcação. Exige um conhecimento profundo dos pescadores sobre os ventos e como melhor aproveitá-los.
É uma estrutura mista de madeira e cordas, formado por uma base de fixação de nome “carlinga” (ou “carninga”), apoiada em dois dormentes cravados ao casco, duas pernas, travessa de amarração e o banco, robusto, com dois rebaixos nas extremidades pelos quais passa o cordame (cabresto) e um profundo sulco, que é o local de encaixe do mastro. O mastro é a estrutura responsável por sustentar e içar a vela da embarcação e costuma ser formado com duas ou três peças roliças emendadas com cavilhas e cordas, tendo em média de cinco a seis metros e o mangue como madeira de construção utilizada.
A carninga é uma prancha reforçada, fixada transversalmente ao casco, com cinco a sete furos (rebaixos) circulares que servem de calço para a base do mastro. Esses rebaixos correspondem às várias posições da vela durante a navegação e recebem os nomes genéricos de furo de fora (central), primeiro do meio e segundo de dentro. No passado, variava de nove a treze.
A trave principal do banco de vela, chamada de trave de escora, é responsável pela fixação do mastro e fica apoiada sobre as pernas que, por sua vez, são reforçadas por ligamentos de cordas fortes e duráveis, chamados de cabrestos.
Banco de Vela - imagem retirada do site Jangada Journey link: https://jangadajourney.com/glossary/banco-da-vela/
Bolina
Chamado de “o juízo da jangada” pelos mestres pescadores, a bolina é um elemento muito importante no sistema de navegação à vela, pois auxilia a compensar a força lateral feita pela vela, evitando que a jangada derive demais. É uma prancha de madeira com cerca de duas polegadas de espessura por doze de largura e 1,80 a 2,10 metros de comprimento. Sendo removível, mergulha pelos calços da bolina de acordo com as necessidades de navegação e direção do vento.
Nas jangadas de paus, haviam duas bolinas, localizadas à direita e esquerda do casco, entre os toros do meio e bordo. Já nas jangadas de tábuas, há apenas uma fenda para a bolina, que fica localizada logo atrás do banco de vela, ao longo do eixo longitudinal.
Bolina de uma jangada. Figura retirada do livro Jangadas, de Nearco Barroso Guedes de Araujo, 1985.
Espeque
Podendo ser considerado como o centro de gravidade da jangada, com seus apoios, cruz, forquilha e salgadeira, o espeque também é um elemento de grande importância para a estrutura da jangada.
É formado por três hastes atravessadas e serve de apoio para a amarração de cordas e cabos, além de suporte para acessórios e mantimentos dos pescadores. Sua haste central, de terminação em forma de garfo (a forquilha do espeque) e as duas hastes menores, à esquerda e à direita, se interligam formando uma cruz. Esta estrutura se fixa no casco através de calços de madeira chamados tatus.
Ilustração do espeque, por Nearco Barroso
Banco de governo
É uma peça única, formada por uma simples tábua de 1,40 m de comprimento, uma polegada de espessura e oito a dez de largura, apoiada sobre quatro estacas (tornos) roliços. É o local de ordens e comando, onde o mestre, sentado, controla e escota o leme de governo.
Ilustração do banco de governo, por Nearco Barroso
Vela
Introduzida na jangada a partir da influência dos holandeses (RODRIGUES, 1940), este elemento, condicionante da eficiência e velocidade da embarcação, é um dos mais característicos da jangada.
A vela compreende um triângulo de lados curvos, confeccionada em pano de algodão, e Nearco Barroso alega que a “ciência” do bom preparo da vela é “entalhar” ou “palombar” a vela pronta, costurando o dorso (corda voltada para o mastro) com um fio forte (envergue), de preferência untado com cera, ao mastro. O envergue, que será urdido ao mastro, passa antes por um tratamento de protensão (estiramento) de modo a evitar o encolhimento do mesmo, prevenindo o surgimento de sacos e bolsas na vela.
A confecção da vela costuma não ser responsabilidade dos carpinteiros navais, que se responsabilizam apenas pela estrutura da embarcação, mas dos clientes que solicitam as jangadas. Para mais informações sobre a construção da vela, consultar em anexo o livro “Jangadas”, de Nearco Barroso Guedes de Araujo.
Tranca
A vela é estendida na sua parte inferior pela tranca (no jargão atual da vela, também chamado de retranca), vara grossa que se apoia, encaixando-se, no mastro, pela extremidade em forma de forquilha (mão de tranca). Da ponta da tranca parte a escota, corda que, passando pelos calçadores com amarração simples, é presa ao remo de governo (na antiga jangada de piúba) e na cana do leme (na atual de tábua). A escota regula a maior ou menor exposição da vela ao vento, conforme seja puxada ou não pelo mestre jangadeiro, que fica no governo da embarcação. Com isso é possível controlar a força aerodinâmica gerada pela vela, ajustando-a da melhor forma às condições de vento mais fortes ou mais fracas.
Calçadores
São os dois maiores e mais fortes tornos cravados sob o convés. Estão assentados obliquamente entre si na popa, ligeiramente atrás, à direita e à esquerda do banco do mestre. Servem para amarrar ou passar a escota, corda que vem da ponta da tranca.
Composição da vela. Figura do livro Jangadas, de Nearco Barroso Guedes de Araujo, 1985.
Evolução e transformações
A evolução da jangada é uma notável história de “inovação conservadora”. Embora Câmara Cascudo tenha considerado a jangada como “funcionalmente terminada a evolução” após a descrição de Henry Koster no século XIX, a embarcação passou por adaptações ao longo do tempo, especialmente em termos de materiais e métodos de uso. De fato, a partir do registro do cronista português a embarcação não sofreu alterações drásticas em sua estrutura e elementos. No entanto, as balsas indígenas encontradas pelos portugueses já eram nomeadas de jangadas pelos lusos desde o momento de sua chegada na costa brasileira, e de 1500 até 1809 (data do registro de Henry Koster), a embarcação passou por transformações mais significativas. Durante a evolução da embarcação, diferentes variações de jangada foram surgindo, adaptadas às necessidades específicas dos pescadores. Atualmente, por exemplo, a demanda é pela construção de jangadas maiores e mais largas, buscando maior estabilidade e conforto.
Pode ser considerada “inovação conservadora”, pois os jangadeiros não descartaram a plataforma básica de paus, mas a aprimoraram com tecnologias externas, adaptando-as de forma à sua realidade. Essa evolução foi uma cadeia de reações impulsionada pela necessidade econômica: a demanda por mais peixe exigiu viagens mais longas, o que necessitou da vela; a vela, por sua vez, tornou indispensáveis a bolina para estabilidade e o remo de governo para direção.
A Evolução do processo construtivo
O processo de construção de jangadas evoluiu com o tempo, principalmente em resposta à disponibilidade de materiais e à demanda dos clientes. A transição da madeira de piúba para a tábua, como relata Heverton de Doninha, foi impulsionada pela escassez da matéria-prima original e pela necessidade de embarcações maiores. Ele explica que a prática da jangada de piúba foi abandonada por falta de material e que hoje as jangadas de tábua permitem construir embarcações maiores e mais largas, como as de 7 metros, que podem ter quase 3 metros de largura, conforme pedido dos clientes. A madeira, como o louro vindo do Pará, é cara, mas permite construir barcos mais largos e altos, que oferecem maior estabilidade e conforto.
Seu Evilásio, em seu relato, conta como a falta de experiência e a necessidade os levaram à inovação, usando ferramentas improvisadas para construir as primeiras jangadas de tábua, que eram mais manobráveis do que as de piúba. Evilásio e seus irmãos foram os pioneiros na construção de jangadas de tábua na sua família, após retornarem do Pará, e o pai, que já possuía ferramentas do avô deles, ensinou-os a serrar a madeira corretamente. A transição para o uso de máquinas elétricas também agilizou o trabalho, reduzindo drasticamente o tempo de certas tarefas.
O processo de montagem inicial também segue um ritual. Heverton explica que a construção começa com a montagem das duas laterais e de uma caverna mestre (esqueleto principal), sobre um “giralzinho” que eleva a embarcação do chão, deixando a proa mais alta, facilitando o trabalho.
O declínio da jangada “tradicional” e a busca por conforto
O uso da jangada em Icapuí tem diminuído nos últimos anos. Heverton de Doninha observa que os pescadores têm abandonado a “navegação pequena” em busca de embarcações maiores e mais confortáveis, que lhes permitam ficar mais tempo no mar e carregar mais pescado. Ele estima que construiu apenas “umas 8 a 10 jangadas só” em sua vida, um número muito menor em comparação a outras embarcações que já fez, especialmente levando em conta o tempo menor de construção das jangadas.
O carpinteiro naval acredita que a falta de conforto da jangada, especialmente em comparação com os barcos maiores, é a principal razão para a diminuição da demanda. Os pescadores, em busca de mais comodidade e espaço, veem a jangada como um ponto de partida temporário, que utilizam por “um ano, dois anos” antes de migrarem para barcos maiores.
Com a perda de espaço das jangadas à vela para as motorizadas, conhecimentos tradicionais também correm o risco de serem perdidos. Dedé de Liliza ressalta que o conhecimento sobre a vela e os ventos é um “segredo ancestral” fruto de muito “erro e acerto”. O banco da vela, por exemplo, possui sete buracos, cada um para um tipo de vento, permitindo que o pescador utilize a vela para navegar mesmo contra o vento. Ele afirma que “hoje é mais jangada motorizada” e que as jangadas “legítimas” (tradicionais) são poucas.
Para ele, a introdução do “motor de rabeta” é o motivo pelo qual as pessoas estão usando menos a vela, pois é “mais fácil e as pessoas estão perdendo a vontade de trabalhar”. Ele associa essa mudança à busca por “facilidade e a preguiça do motor” e ao “aconchego” que permeiam a vida hoje. Dedé de Liliza contrasta isso com a vela, que considera “muito mais gostosa”. O carpinteiro acredita que o motor “veio para acabar toda aquela beleza da jangada em si” e que, com a facilidade do motor e de outras tecnologias como GPS e piloto automático, o pescador perde “toda aquela sua capacidade que aprendeu”.
O retorno às jangadas
Por mais que seja reconhecido que as jangadas vem perdendo espaço, Olismar também aponta para uma tendência de retorno: à medida que os pescadores envelhecem, eles tendem a preferir a jangada em detrimento dos barcos maiores. Isso se deve à conveniência de uma pesca rápida, que lhes permite “ir de manhã e vem de tarde”, voltando para casa diariamente para dormir. Para esses pescadores mais velhos, a jangada representa uma forma de continuar exercendo a profissão de maneira menos exaustiva e mais conectada à vida familiar. Apesar do declínio recente, o uso da jangada é descrito por Olismar como algo que “não cai”, “não desaparece” e está sempre “renovando”.
Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Jangada: uma pesquisa etnográfica. 2. ed. São Paulo: Global, 2002.
ARAÚJO, Nearco Barroso Guedes de. Banco do Nordeste do Brasil. Jangadas. 1a ed. Fortaleza: BNB, 1985.
Assad, L. T. Aspectos da qualidade do pescado marinho no sistema de pesca artesanal, em duas comunidades do Estado do Ceará. Dissertação de Mestrado, Departamento de Engenharia de Pesca, Universidade Federal do Ceará, 193 p., Fortaleza, 1997.
Bernhard, J. R. C. Aspectos qualitativos e quantitativos das embarcações da pesca marítima no Estado do Ceará (Brasil). Dados de 1977. Dissertação de Graduação, Departamento de Engenharia de Pesca, Universidade Federal do Ceará, 38 p., Fortaleza, 1977.
Bezerra, C. A. B. Impacto social da pesca da lagosta com compressor no distrito de Redonda, Icapuí-CE. Dissertação de Graduação, Departamento de Engenharia de Pesca, Universidade Federal do Ceará, 81 р., Fortaleza, 1992.
MARINHA DO BRASIL. Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha. Coleção Alves Câmara.
BRAGA, Miguel Savio de Carvalho. Embarcações a vela do litoral do Estado do Ceará: construção, construtores, navegação e aspectos pesqueiros. 2013. 342 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Ciências do Mar, Pós-Graduação em Ciências Marinhas Tropicais, Fortaleza, 2013.
RODRIGUES, José Honório et al. Civilizações Holandesas no Brasil. São Paulo: Brasiliana, 1940.259 p.
SILVA, L. G. DE MESTRES JANGADEIROS À COMISSÁRIOS DE PEIXE. Mares: Revista de Geografia e Etnociências, v. 2, n. 1, p. 109-121, 16 out. 2020.
RAMALHO, C. W. N.. CULTURA DE OFÍCIO MARÍTIMA PESQUEIRA. Sociologia & Antropologia, v. 11, n. 3, p. 913–943, out. 2021.
MONTENEGRO, Marildo Maciel. Caracterização da construção e dos construtores de jangada e a evolução da frota no estado do Ceará. 2007. 57 f. Monografia (Graduação em Engenharia de Pesca)-Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007.
MESQUITA, João Lara. Jangada. Mar Sem Fim, 23 dez. 2017. Disponível em: https://marsemfim.com.br/jangada/.
MESQUITA, João Lara. A saga de Jacaré e a jangada São Pedro. Mar Sem Fim, 17 dez. 2017. Disponível em: https://marsemfim.com.br/a-saga-de-jacare-e-a-jangada-sao-pedro/.
ALBATROZ. Conceitos Sociais: Comunidades ou Populações Tradicionais – Jangadeiros. Albatroz, 2023. Disponível em: https://www.albatroz.eco.br/conceitos-sociais-comunidades-ou-populacoes-tradicionais-jangadeiros/.