Nivalde de Castro¹
José Sidnei Colombo Martini²
Roberto Brandão³
Artigo publicado em Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/noticia/2024/10/03/a-crise-climatica-e-o-horario-de-verao.ghtml
A população mundial está tomando consciência dos impactos do aquecimento global, por meio do noticiário, quase que diário, de fenômenos climáticos extremos, que estão ocorrendo de forma cada vez mais frequente e com maior grau de intensidade. O Brasil, por sua dimensão continental, já enfrenta eventos climáticos extremos, como os que ocorreram em novembro passado, na região da capital de São Paulo, as graves enchentes no Rio Grande do Sul e, mais recentemente, as ondas de calor e fogo pelo
país. Como resultado, a sociedade brasileira tende a ganhar, gradativamente, consciência da gravidade das severas mudanças climáticas às quais o Brasil está sendo
submetido e que devem se agravar.
Nesse inverno tropical, o país enfrenta os efeitos e impactos de temperaturas recordes, com baixíssima umidade, incêndios inimagináveis em boa parte do território nacional. Já no tema deste artigo, constata-se uma redução do volume de chuvas, situado abaixo das séries históricas. Dada a importância estratégica da energia elétrica, esse cenário acendeu o alerta de que a produção de energia elétrica, de pronto, ficará mais cara, tendo em vista a dependência nacional das usinas hidrelétricas, que ainda representam quase a metade de toda a capacidade geradora do país.
Por um lado, o Brasil detém uma vantagem ímpar em relação ao restante do mundo, na medida em que a matriz elétrica brasileira tem a maior participação mundial de fontes renováveis (hidrelétricas, eólicas, solares e térmicas à biomassa). Contudo, por outro lado, já que a geração de energia elétrica ocorre com base em recursos energéticos vinculados diretamente às condições da natureza, são imprescindíveis estudos que estimem as possibilidades de chuvas, vento e sol e avaliem o cenário de comportamento e crescimento da demanda de energia elétrica. Considerando as características da matriz elétrica brasileira, esses estudos recebem, sempre, prioridade máxima da política energética do país, por indicarem a probabilidade dos cenários de equilíbrio entre a demanda e oferta de energia elétrica no curto e médio prazo.
Para desenvolver esses estudos, o Setor Elétrico Brasileiro (SEB) possui duas importantes e qualificadas instituições. A primeira é a Empresa de Pesquisa Energética
(EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME), que elabora um conjunto de estudos, dentre os quais se destaca o Plano Decenal de Expansão da Energia (PDE).
No PDE, são realizadas projeções (cenários) firmando parâmetros para o equilíbrio entre oferta e demanda, que orientam as políticas públicas e as decisões de investimento de agentes privados. A outra instituição é o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que tem a árdua e estratégica responsabilidade de, literalmente, “manter as luzes acessas”, já que está sob a sua responsabilidade direta o comando da operação de praticamente todas as unidades geradoras de energia elétrica e de todas as linhas de transmissão e subestações de alta tensão do Brasil. Para se ter uma dimensão dessa responsabilidade, o Brasil possui 224.500 MW de capacidade geradora de energia elétrica e 171.500 km de linhas de transmissão de alta tensão atualmente, sendo o maior sistema interligado do mundo, que está sob a responsabilidade direta do ONS.
Após esse enquadramento geral, a atenção analítica deste pequeno e objetivo artigo é examinar os cenários de curto e médio prazo para o SEB, com base no estudo recente
publicado pelo ONS, o Plano da Operação Energética 2024/2028 (PEN 2024/2028), e dele extrair elementos sobre a pertinência ou não da adoção do horário de verão.
O PEN 2024/2028 possui uma alta complexidade técnica, utiliza modelos computacionais ultraqualificados e apresenta simulações (cenários estimados com bases probabilísticas) para o horizonte de 2024 a 2028. Um resultado do estudo para os próximos dois anos é a preocupação com o suprimento elétrico, considerando vários cenários climáticos, dentre eles um cenário crítico, de baixo volume de chuvas, até o final de 2024.
Destaca-se que, historicamente a partir de fins de outubro, se iniciam as chuvas, denominado por período úmido, que vai até abril do ano seguinte. Simultaneamente às estimativas da evolução climática, o estudo estima o comportamento da demanda de energia elétrica, com uma previsão de crescimento de 13% entre 2024 e 2028. O aumento da capacidade instalada prevista é de 30 GW, que deverá ser atendida principalmente com investimentos de agentes privados em novas unidades de micro e minigeração distribuída, em energia solar fotovoltaica e eólica, outras contribuições de pequenas centrais hidrelétricas e unidades de biomassa, bem como de usinas termelétricas.
Como destacado, o ONS possui uma difícil e complexa responsabilidade de conciliar e equilibrar, em tempo real e instantâneo, a disponibilidade das várias formas de geração (224,5 GW) com a demanda de energia elétrica. O desafio atual é que essa responsabilidade é agravada por conta do crescimento das fontes não controláveis de
energia (eólica e, principalmente, solar), cuja disponibilidade, isto é, a geração, não depende da atuação direta da operação, mas das condições próprias do comportamento
da natureza. Daí resulta a necessidade imperiosa dos estudos de previsões e simulações.
Diante desse quadro e da situação de incertezas climáticas, o MME, com apoio do ONS, da EPE e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) está atento e examinando um conjunto de ações com o objetivo maior de enfrentar as novas e preocupantes situações climáticas adversas. Nesta direção, as primeiras medidas foram a adoção da bandeira tarifária vermelha patamar 1, a partir de setembro, que aumenta a conta de luz em torno de R$ 4,00 para cada lote de consumo de 100 kW, e da bandeira vermelha patamar 2, a partir de outubro corrente, adicionando R$ 7,88 para cada lote de consumo de 100 kW.
Observa-se que a aplicação da bandeira tarifária vermelha possui dois objetivos. O primeiro é sinalizar à sociedade que as dificuldades operacionais (redução da geração
das usinas hidrelétricas por causa das poucas chuvas) exigem o acionamento de usinas termelétricas, que custam muito mais do que as hidrelétricas, resultando em uma
despesa extra relativa exclusivamente para compra de combustíveis. Já o segundo objetivo é induzir a população a economizar e reduzir o consumo de energia elétrica,
tendo em vista o aumento do seu custo.
Outra medida que faz parte dos instrumentos de curto prazo, que tem sido ventilada pelo MME, é o horário de verão, impondo à boa parte do país adiantar os relógios em uma hora. Esse instrumento foi adotado entre 1985 e 2019, até ser descontinuado em função de estudos do ONS que concluíram que não haveria mais uma redução significativa no consumo de energia elétrica em razão da sua adoção.
Agora, quais as razões para o MME reavaliar a volta do horário de verão? Essencialmente, as motivações parecem estar associadas ao forte crescimento da capacidade de geração eólica e, sobretudo, solar entre 2019 e 2024. Em primeiro lugar, o crescimento da matriz de geração baseada em fontes não controláveis cria um problema de atendimento do pico do consumo da parte da noite, que se situa no entorno das 19h, uma vez que a esta hora não há geração solar e, em alguns dias, a geração eólica pode ser muito baixa.
Neste sentido, o horário de verão é favorável, pois desacopla a entrada da iluminação pública e residencial do fim do expediente comercial. A iluminação pública se acende
uma hora mais tarde durante o horário de verão, quando boa parte das empresas já encerraram ou reduziram as atividades e os trabalhadores já chegaram em casa. Algo
análogo ocorre com a iluminação das residências, que também passa a ser acionada uma hora mais tarde com o horário de verão.
Como consequência, evidencia-se não apenas um deslocamento de uma hora na ponta da demanda da noite, como uma redução do consumo nesses momentos, como pode
ser visto no Gráfico 1, em que a carga de um dia típico de verão é estimada para os dias úteis nas Regiões Sudeste e Centro-Oeste. Observa-se uma redução importante da
demanda de energia elétrica entre 18h e 19 h e um discreto aumento entre às 22h e 6h.
A mudança na curva de demanda, com a diminuição do consumo durante a demanda máxima à noite (ponta da noite), torna mais fácil e menos oneroso o atendimento ao
consumo. O gráfico permite observar que a demanda é máxima na parte da tarde, devido ao uso intenso de refrigeração durante o verão, porém, nesse período, a geração solar é intensa, fazendo com que, na prática, as gerações hidrelétricas e termelétricas só precisem ser acionadas a plena potência no horário de ponta do consumo da noite.
Assim, com o horário de verão, conforme indicado no Gráfico 1, a demanda é substancialmente menor e ocorre mais tarde, passando do intervalo entre 18h e 19h para entre 20h e 22h.
Abaixo, o Gráfico 2 permite visualizar com mais clareza essa questão, já que apresenta a demanda (carga) líquida, isto é, a carga sem a oferta das gerações solar e eólica, ou
seja, a quantidade de energia elétrica que o ONS precisa atender somente com as usinas hidrelétricas e termelétricas, que são fontes controláveis.
Adicionalmente, uma medida que pode ser adotada, como já o foi em 2021, é a
aplicação do instrumento denominado por “resposta da demanda”. Trata-se de uma ação relativamente simples, a partir da qual é ofertada, às empresas grandes consumidoras de energia elétrica, a opção de redução ou mudança do horário do consumo de energia elétrica, especialmente no horário de pico. Em troca, esses consumidores ganham um prêmio monetário calculado por MW não consumido. Comumente, como em 2021, essa medida é adotada principalmente em momentos de hidrologia crítica. Por fim, e a título de conclusão, evidencia-se que a população deve ser esclarecida de forma bem didática para compreender o porquê da adoção de medidas desse tipo, em especial sobre os custos e benefícios a elas associados, com transparência e simplicidade para o bom atendimento social. Ou seja, explicações e convencimentos desapaixonados, de base técnica e sem polarização política fazem com que a própria população colabore intencionalmente para a superação das dificuldades e dos desafios que os fenômenos climáticos extremos e o processo de transição energética estão impondo ao Brasil.
1 Professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador geral do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel-UFRJ).
2 Professor sênior da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e pesquisador associado do Gesel-UFRJ.
3 Pesquisador sênior do Gesel-UFRJ