FORMANDO ENGENHEIROS E LÍDERES

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A Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP) desenvolveu uma inovação que possibilitará à indústria mundial do cimento dobrar sua produção sem emitir mais dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. A tecnologia é tão inovadora que pode mudar o modelo de negócio deste produto. Mais do que isso: será fundamental para garantir a sustentabilidade do setor no médio e longo prazo.

Fruto de 12 anos de trabalho e do envolvimento de mais de 20 pesquisadores, a inovação lança mão dos mesmos ingredientes usados pela indústria na produção do cimento e concreto. “O pulo do gato é o emprego de novas tecnologias de seleção e a combinação de matérias-primas que permitem substituir uma grande quantidade do material responsável pela emissão de CO2”, conta o engenheiro civil Vanderley M. John, professor do Departamento de Engenharia de Construção Civil da instituição, que coordena o projeto juntamente com o professor Rafael G. Pileggi.

A tecnologia da Poli consiste basicamente em aumentar a proporção de filler calcário cru na fórmula do cimento Portland, adicionando dispersantes orgânicos. O filler é uma matéria-prima que dispensa tratamento térmico (calcinação) – processo que na fabricação do cimento é responsável por mais de 80% do consumo energético e 90% das emissões de CO2. Empregado desde a década de 1970, a quantidade de filler na fórmula do cimento nunca pôde ser alta por comprometer a qualidade do produto. “Nós conseguimos chegar a teores de 70% de filler. Com isso, será possível dobrar a produção mundial de cimento sem construir mais fornos e, portanto, sem aumentar a emissão de CO2”, explica.

A emissão de CO2 varia de país para país e depende da tecnologia/matéria-prima empregada na produção. O Brasil tem hoje um fator de emissão de aproximadamente 610 kg CO2/t cimento; a Espanha, 698 kg CO2/ton cimento; a Inglaterra, 839 kg CO2/ton cimento; e a China, 848 kg CO2/ton cimento. “Tomando como base apenas o cimento brasileiro, a tecnologia da Poli poderia fazer cair o fator de emissão para cerca de 360 kg CO2/ton cimento, ou seja, 40% a menos”, explica John.

Com demanda anual da ordem de 3,6 bilhões de toneladas/ano, o consumo do cimento deverá aumentar 2,5 vezes até 2050, puxado pelo crescimento dos países em desenvolvimento. “Sem inovações, estudos mostram que no futuro o setor poderá ser responsável por cerca de 20% do total de CO2 emitido na atmosfera”, afirma John. Hoje, estima-se que o setor já emita 5% do total de CO2.

Longo caminho – O cimento Portland tradicional é composto basicamente por argila e calcário, elementos que, quando fundidos no forno em alta temperatura, se transformam em pequenas bolotas chamadas de clínquer. Esses grãos de clínquer são moídos com gipsita – a matéria prima do gesso – até virarem pó. “Estima-se que para cada tonelada produzida de clínquer são emitidos entre 800 e 1.000 kg de CO2, incluindo o CO2 gerado pela decomposição do calcário e pela queima do combustível fóssil – entre 60 e 130 kg por tonelada de clínquer”, explica Pileggi.

Em busca de um processo mais ecoeficiente, engenheiros de todo o mundo trabalham há mais de 70 anos aperfeiçoando a fórmula do cimento Portland. A primeira tentativa bem-sucedida foi a substituição parcial do clínquer pela escória de alto-forno, resíduo da indústria da siderurgia. Posteriormente, além da escória, foi adotada a cinza volante – resíduo de termoelétricas a carvão.

“O problema é que a indústria do aço e a geração de cinza volante cresce menos que a do cimento – o que inviabiliza essa estratégia no longo prazo”, afirma Pileggi. “Chegamos ao ponto que o setor já utiliza quase toda a escória e cinza volante disponível em boa parte do mundo”, completa. O filler foi outra tentativa. No entanto, sua proporção máxima na fórmula é de 10% e, em algumas situações especiais, chega a 30%.

 Como solução alternativa para a mitigação de gases do efeito estufa, a indústria vem estudando a possibilidade de adotar a tecnologia de sequestro de carbono, mas o custo desta estratégia deverá ter um impacto social negativo sobre os países em desenvolvimento. “A WBCSD/IEA, por exemplo, estima em até US$ 800 bilhões o investimento na infraestrutura para captar e CO2”, conta John.

“A estratégia da Poli é muito econômica, especialmente se comparada com a do sequestro de carbono, pois torna possível ampliar a produção sem investir na construção de mais fornos nem gastar em combustível para operá-los”, completa John. Uma fábrica de cimento padrão custa a partir de US$ 200 milhões, sendo que parte significativa deste valor deve-se ao custo dos fornos. O combustível é também o insumo mais caro da indústria.

Fórmula inteligente – O segredo da tecnologia da Poli está na combinação inteligente de matérias-primas triviais com ferramentas e conceitos avançados, explica Pileggi. A começar pelo controle da moagem e seleção dos elementos que compõem o cimento. “Empregamos uma tecnologia baseada em modelos de dispersão e empacotamento de partículas que possibilita organizar os grãos por tamanho, favorecendo a ‘trabalhabilidade’ do cimento”, conta Pileggi.

O uso de ferramentas avançadas para medir a reologia no processo de seleção e combinação de matérias primas foi outro diferencial. A reologia é um ramo da ciencia que estuda o escoamento dos fluidos, no caso, a base de cimento. “A reologia permitiu que conseguíssemos obter misturas fluidas com baixo teor de clínquer e outros ligantes como a escória.” conta Pileggi.

“Com estas ferramentas, conseguimos também reduzir a quantidade de cimento sem perda da qualidade do concreto”, afirma Bruno Daminelli, doutorando no projeto que recentemente venceu um prêmio internacional sobre concretos de baixo consumo. “Para um concreto de alta resistência, por exemplo, conseguimos utilizar apenas 120 kg de cimento – bem abaixo dos 500 kg que o mercado emprega”, afirma.

Transferência da tecnologia – Segundo Pileggi, o desafio agora é desenvolver tecnologias que permitam realizar a moagem e a seleção de partículas em larga escala de forma estável e competitiva, para um volume estimado em quase 3,6 bilhões de toneladas/ano. Para John, a adoção da tecnologia pode ser progressiva, avançando à medida que a indústria ganha experiência e ajusta seu modelo de negócio. Em algumas aplicações, particularmente em concreto armado exposto a ambiente externo, sistemas com altos teores de filler podem vir a apresentar problemas de durabilidade. “Mas para estes problemas existem soluções inovadoras, seguras e de baixo custo que devem ser desenvolvidas”, afirma John.

“Nós fizemos a prova de conceito, mostramos que é possível mudar a forma como se fabrica cimento, concretos e argamassas, agora é preciso desenvolver uma tecnologia de moagem sofisticada em escala industrial”, diz. A Escola Politécnica já está negociando parcerias com a indústria para aperfeiçoar e transferir esse conhecimento. Atualmente, os principais grupos que fabricam cimento no mundo incluem, além dos conglomerados chineses, as empresas Holcim, Lafarge, Heidelberg, Cemex, Italcimenti, e as brasileiras Votorantim e Intercement.

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