FORMANDO ENGENHEIROS E LÍDERES

FORMANDO ENGENHEIROS E LÍDERES

O artigo abaixo foi escrito na ocasião das comemorações dos 100 anos do curso de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica da USP, em 2011. Divulgamos o artigo novamente em memória do professor Luiz de Queiroz Orsini, falecido em 20 de janeiro de 2018.


Uma vida dedicada ao ensino

Por Evanildo da Silveira

Depois de longa e produtiva carreira, aos 89 anos o professor emérito da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), Luiz de Queiroz Orsini, curte a aposentadoria dedicando-se a seus hobbies prediletos: a leitura de jornais, revistas e livros, reunidos em sua biblioteca e espalhados pela sala de sua espaçosa casa no bairro do Butantã, em São Paulo. Agora, ele também pode lê-los da forma mais moderna que existe: num tablet, um pequeno computador em forma de prancheta, que, entre outras aplicações, também pode ser usado para leitura desses veículos de informação em formato eletrônicos. Foi um presente de um de seus filhos.

Não poderia haver presente mais adequado ao perfil do presenteado. Desde os seus tempos de aluno de graduação, Orsini se interessou pela eletrônica. Interesse esse que, segundo declarou em uma entrevista a Shozo Motoyama, em 2004, foi despertado pelo desafio que esta área – a fronteira do conhecimento na engenharia elétrica naquela época – representava para jovens como ele. Mais tarde, já professor e pesquisador, ele teve papel destacado no estabelecimento e divulgação desse ramo do conhecimento no Brasil.

O engenheiro eletricista José Roberto Castilho Piqueira, vice-diretor da Poli, dá um testemunho eloquente desse aspecto da carreira de Orsini. “O primeiro texto de eletrônica em idioma português, destinado a cursos de ensino superior na área, foi escrito por ele”, diz “É um livro grosso, de capa verde, que guardo com muito carinho, pois, de maneira clara, traça o caminho inicial das válvulas para os dispositivos semicondutores.” Piqueira refere-se ao livro Eletrônica, que foi inclusive traduzido para o holandês e francês por uma empresa multinacional do setor. “Além disso, Orsini formou as primeiras gerações de engenheiros eletrônicos que hoje são responsáveis por vários produtos e serviços, essenciais para a vida da população do Brasil”, acrescenta o vice-diretor da Poli.

Nascido no Rio de Janeiro, em 9 de outubro de 1922, Orsini escolheu relativamente cedo a carreira a qual seguir. Na adolescência, quando ainda era estudante do ensino secundário, ele já via com entusiasmo o desenvolvimento da eletricidade no Brasil. Impressionado com as grandes obras de usinas hidrelétricas e com a eletrificação das estradas de ferro, que se intensificava no País, Orsini decidiu, alguns anos mais tarde, em 1941, seguir o exemplo do pai, que era engenheiro civil e de minas pela Escola de Minas de Ouro Preto, e ingressar no curso preparatório para o vestibular da Poli.

Em 1942, ele foi aprovado para o curso de formação de engenheiro mecânico-eletricista. Mas, assim que iniciou o curso de graduação, acabou se interessando pela eletrônica. “De fato, eu nunca trabalhei com eletrotécnica”, lembra. “Sempre me interessei pela eletrônica. Quando eu ingressei na Poli, existia o curso de formação de engenheiros eletrotécnicos, que tinha um componente da área que eu gostava. A radiodifusão já era muito comum e estavam surgindo as primeiras empresas de eletrônica no Brasil. Daí surgiu o meu interesse pela área, que continuou pela vida inteira.”

Sua decisão de enveredar pela eletrônica foi reforçada nos primeiros anos do curso de graduação, quando ele foi convidado para trabalhar como aluno-assistente no Departamento de Física da Poli, cujo diretor era Luiz Cintra do Prado, que ele qualifica como o melhor professor que já conheceu. Ele teve então a oportunidade de trabalhar no desenvolvimento de experimentos práticos nas áreas de eletricidade e eletrônica, e ser assistente do professor Prado nas aulas de física aplicada – em particular, acústica arquitetônica e iluminação – na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. E, logo que se formou, em 1946, foi contratado como professor-assistente na cadeira de eletrotécnica geral.

Descobriu aí sua verdadeira vocação: dar aulas. “Eu tive aula com ele na graduação, em 1971”, recorda o hoje engenheiro eletricista André Fabio Kohn, professor do Departamento de Engenharia de Telecomunicações e Controle da Poli. “Ele tinha uma fama fantástica e era de fato um professor excelente, com aulas fabulosas. A preocupação dele sempre foi realmente como ensinar, como conduzir o ensino na graduação, bem como na pós-graduação.” Kohn conta que Orsini acompanhava as matérias que estavam sendo dadas na pós-graduação nos centros mais avançados do mundo, se inteirava sobre elas e lançava equivalentes aqui. “A grande contribuição dele para a Poli, para USP, para o País foi o ensino”, complementa. “Ele ensinou o pessoal a ensinar engenharia elétrica.”

O engenheiro eletricista Vitor Heloiz Nascimento, professor Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Poli, foi um dos que aprenderam muito com Orsini. “Fui aluno dele na graduação, em 1986, no curso circuitos elétricos, e depois de mestrado, entre 1990 e 1992” conta. “Ele sempre foi muito preocupado com o ensino, principalmente na graduação. Acho que a grande paixão dele era ensinar na graduação. Muito mais do que qualquer outra atividade, ele adorava dar aulas. Ele foi professor de quase todos os professores aqui da Poli.”

Não é à toa, portanto, que Orsini tenha se dedicado a essa atividade por mais de seis décadas. Além disso, a importância dele para a estruturação e consolidação do curso de Engenharia Elétrica da Poli, criado em 1911, é reconhecida por todos. Tanto que, em novembro, quando será comemorado os 100 anos do curso de Engenharia Elétrica, Orsini será homenageado.  “Não há dúvidas que esse nosso curso teve o doutor Orsini como grande mentor, organizando as matérias, produzindo textos e, principalmente, dando aulas que entusiasmavam os estudantes”, diz Piqueira.

Para o vice-diretor da Poli, essa atuação de Orsini foi além da USP. “Os outros cursos de engenharia elétrica criados no país têm, nos textos do dele, a base de suas estruturas”, explica. Em outras palavras, Orsini teve atuação fundamental na modernização do ensino de engenharia elétrica no Brasil, por meio da criação de novos cursos e laboratórios. Além disso, ele publicou uma série de livros didáticos, entre os quais Circuito elétrico, Simulação do circuito eletrônico, Introdução aos sistemas dinâmicos e Exercícios de circuitos elétricos.

Além de educador, Orsini também atuou ao longo de sua carreira acadêmica como pesquisador. Essa faceta de sua atividade começou em 1949, três anos após sua graduação, quando ele ganhou uma bolsa de estudos para realizar seu doutorado na Universidade de Sorbonne, em Paris, na França, desenvolvendo uma pesquisa sobre ruídos de baixa frequência (o “chiado” produzido por circuitos eletrônicos que, na época, se estudavam alternativas para de reduzi-lo ao máximo).  De volta ao Brasil, em 1952, o professor iniciou as primeiras pesquisas no país sobre a ionosfera (uma camada da atmosfera superior que se inicia em 100 quilômetros de altitude e se estende até cerca de 800 quilômetros) e realizou estágios curtos na área nos Estados Unidos.

Diferentemente do que é comum ocorrer em muitas universidades atualmente, onde a pesquisa e o ensino estão dissociados, Orsini procurava unir essas duas atividades da vida acadêmica. “Na nossa época, a pesquisa era realizada para formar bons professores”, explica Antonio Hélio Guerra Vieira, que foi se assistente-aluno, em 1951, depois professor da Poli e hoje é presidente do Conselho Curador da Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia (FDTE). “A gente realizava pesquisa para aprender e depois poder ensinar.”

Em 1954, Orsini obteve o título de livre-docente da Poli. E, em 1957, prestou concurso e foi aprovado para ser professor catedrático da cadeira de eletrotécnica fundamental, que é de suma importância na engenharia elétrica. Algumas das principais contribuições dadas por Orsini para o aprimoramento do curso de engenharia elétrica da Poli foram a modernização do currículo que, em meados da década de 1950, consistia basicamente de tópicos de engenharia civil, com algumas noções de mecânica e eletricidade.

Nas décadas seguintes, ele e seus colegas organizaram a expansão do departamento de engenharia elétrica e a melhoria do currículo, que além de disciplinas na área de geração e distribuição de eletricidade, passou a incluir tópicos como a eletrônica, telecomunicações e sistemas digitais.  Além disso, Orsini também participou da criação de laboratórios práticos para complementar o ensino teórico e ajudou a introduzir o ensino de análise de circuitos, eletromagnetismo e outros tópicos, com o uso de técnicas matemáticas avançadas.

De acordo com ele, a modernização do curso de elétrica da Poli foi obra de uma contribuição de várias pessoas. “Nós procurávamos nos espelhar nas melhores universidades do exterior, como o MIT (Massachusetts Institute of Technology) e a Universidade de Stanford, dos Estados Unidos”, lembra. “Além disso, também é preciso levar em conta a própria evolução da eletrônica, que foi inacreditável.”

Entre as principais descobertas na área, as quais Orsini teve a possibilidade de acompanhar como espectador privilegiado, estão o transistor, inventado em 1947, quando ele estava em Paris e que foi fundamental para o desenvolvimento dos aparelhos eletroeletrônicos; e os circuitos integrados, que possibilitaram o barateamento dos produtos eletrônicos. “Hoje, todos nós estamos envolvidos em uma rede eletrônica, de modo que não é de estranhar que a engenharia elétrica e, em particular, a eletrônica tenha se desenvolvido muito”, diz. “E essa tecnologia tem que ser aprendida pelas novas gerações, que devem tocá-la para frente.”

Ao longo da carreira, Orsini também teve breves passagens pelas áreas administrativas. Na USP, ele foi diretor do Instituto de Física, em 1975, e pró-reitor de graduação, no período de 1988 a 1990, a convite do então reitor José Goldemberg. Mas apesar de avaliar como boas essas duas experiências em cargos administrativos, afirma que sua verdadeira vocação era, mesmo, ser professor e pesquisador. Seja como for, em todas as atividades que exerceu, sua postura só rende elogios.

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