FORMANDO ENGENHEIROS E LÍDERES

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Material e tecnologia desenvolvidas por pesquisadores da USP e da Universidade de Tóquio abrem possibilidades para aplicações em diversas áreas

Em uma cena do clássico do cinema “O Exterminador do Futuro 2”, um dos personagens principais, o robô T-1000, se transforma em um líquido metálico para atravessar grades e fugir da prisão. Momentos depois, o vilão, interpretado pelo ator Robert Patrick, se recompõe em sua forma inicial, retornando ao estado sólido e à forma humana. A sequência de transformações que, há algumas décadas atrás, parecia  impensável, hoje faz parte do dia-a-dia de laboratórios científicos.

Inspirados pelo grande símbolo cinematográfico da ficção científica, os pesquisadores Chi Nan Pai, do Departamento de Engenharia Mecatrônica da Escola Politécnica (Poli) da USP, e Satoshi Honda, do Department of Basic Science of the University of Tokyo, estabeleceram uma cooperação internacional para produzir uma pesquisa inovadora na área de engenharia de materiais. Intitulado Acoustodynamic Covalent Materials Engineering for the Remote Control of Physical Properties Inside Materials, o trabalho dos pesquisadores investiga a interação de um material polimérico, desenvolvido especialmente para o experimento, com o chamado Ultrassom Focado de Alta Intensidade (HIFU na sigla em inglês). O objetivo do estudo foi se utilizar a tecnologia do HIFU para realizar transformações pontuais em objetos poliméricos, de maneira que seja possível reverter, reconstruir e remodelar estes artefatos, criando objetos funcionais. Futuramente, o sistema poderá ter amplas aplicações em áreas como a saúde e a indústria. 

O HIFU-O ultrassom é um tipo de onda mecânica gerada por dispositivos chamados transdutores, que transformam a energia elétrica em mecânica.  HIFU é uma técnica que converge as ondas de ultrassom em um ponto, denominado ponto focal, para concentrar a energia neste ponto, num processo semelhante a uma lupa concentrando feixes de luz. Ao submeter objetos feitos com o material polimérico desenvolvido a um feixe de ultrassom focado de alta intensidade, os pesquisadores notaram que a alta concentração de energia no ponto focal fez com que o material da região mudasse de estado físico – do sólido para o líquido – enquanto que o material no seu entorno permaneceu inalterado. E, após a interrupção do ultrassom, o material voltou ao seu estado sólido original.

Os transdutores – Projetados e caracterizados pelo professor Chi Nan Pai, os transdutores utilizados no experimento foram integralmente desenvolvidos nos laboratórios da Escola Politécnica. Pela capacidade de aumentar a concentração 

 de energia em um ponto, sem afetar a região em volta e de propagar em meios não transparentes, os dispositivos se mostraram ideais para serem utilizados em diversas áreas de pesquisa e aplicação. “Cada feixe de onda contém uma pequena quantidade de energia, insuficiente para reagir com o polímero. O fenômeno da transformação só ocorre graças ao trabalho dos transdutores de concentrar as ondas no ponto focal

Parceria e desafios

A parceria entre os pesquisadores foi firmada em 2018, período no qual Chi Nan Pai esteve em Stanford para realizar pesquisa em novas técnicas de ultrassom e conheceu Satoshi Honda. Mas os primeiros experimentos consistentes da pesquisa só foram realizados em 2020, mesmo ano que eclode a pandemia da covid-19 e universidades de todo mundo, inclusive a USP, interromperam as atividades presenciais, transferidas para as salas de aula virtuais e reuniões de videoconferência. Mesmo com acesso limitado ao campus e a distância continental entre os dois, a persistência dos pesquisadores viabilizou o desenvolvimento da pesquisa em um contexto de tamanha complexidade. “O início foi bem desafiador, tínhamos acesso limitado à universidade. Eu projetei os transdutores e precisei especificar todas as etapas de fabricação, montagem e caracterização aqui do Brasil e enviei as informações para que os testes fossem realizados por ele no Japão”.

Foto: George Campos/USP Imagens

 O material – Com a criação da impressão 3D por fotopolimerização, surgiram grandes oportunidades para o desenvolvimento de novas moléculas funcionais para a criação de objetos 3D funcionais. Para produzir o material polimérico com essa finalidade, o professor Satoshi Honda se viu diante de dois grandes desafios. O primeiro deles é fabricar objetos 3D responsivos a estímulos usando  dynamic-covalent materials (DCMs) – materiais dinâmicos covalentes.  Um dos tipos de estímulo é a fotoestimulação, que altera as propriedades de um objeto 3D impresso usando a luz. Porém, se o objeto foi impresso usando fotopolimerização, então um processo poderia afetar o outro.

O segundo obstáculo era desenvolver uma metodologia acessível para romper as ligações covalentes do material, para o descarte do objeto 3D impresso por fotopolimerização, após o seu tempo de uso. A resposta encontrada foi o uso do ultrassom focado de alta intensidade, tanto para o estímulo de objeto 3D funcional como para o seu descarte após o uso. Devido às suas características, o HIFU é uma tecnologia já estabelecida e amplamente aplicada na área da saúde. Ele tem sido estudado e utilizado em tratamentos não invasivos de câncer, sem incisão na pele e livre de radiação. 

“O HIFU é uma tecnologia em ascensão na medicina. Pacientes com câncer de fígado, por exemplo, podem se beneficiar muito do seu uso. A técnica mais comum  de remoção da doença é cortar a parcela onde o câncer se reproduz. Com o HIFU, eu posso posicionar os transdutores do lado de fora e ele será capaz de alcançar o tecido doente, no ponto focal, e queimá-lo. Isto, mantendo a superfície da pele intacta e sem riscos de sangramentos, uma vez que os vasos sanguíneos são cauterizados no processo”, detalha Chi Nan Pai, que também tem formação em medicina.   

Futuro da tecnologia e as amplas aplicações 

Experimentos de aperfeiçoamento do sistema ainda estão sendo realizados, mas os pesquisadores já vislumbram os impactos futuros da pesquisa em áreas como a saúde e a indústria. “Estamos abrindo muitas portas para a utilização de polímeros em diversas áreas. A impressão 3D é uma tecnologia que vem sendo amplamente aplicada, e com a utilização do polímero como material será possível promover mudanças temporárias nos objetos. Vamos supor que queremos um objeto composto por juntas, com partes fixas e móveis. Aplicando ultrassom nas partes com movimentação limitada será possível transformar as suas propriedades, realizar as mudanças desejadas, e em seguida reverter o artefato para o estado inicial do material, sólido. Esta é a grande inovação da pesquisa, mas ainda estamos longe de começar a investigar essas aplicações”. 

“Outra possibilidade que cogitamos viabilizar e poderá trazer inúmeros benefícios para a sociedade é a utilização do polímero na produção de adesivos para a indústria, como a automobilística. Quando surgir a demanda para trocar ou reparar uma peça do automóvel que foi colada, não haverá risco de destruir a peça na sua remoção. Com a irradiação do HIFU, é possível removê-la e depois colá-la novamente, sem prejuízos ou danos às estruturas do entorno. Isso não seria possível com fotoestimulação, uma vez que as peças não são transparentes.

 

Chi Nan Pai, que também tem formação médica, vê na pesquisa um grande potencial para aplicações também na área médica. Segundo ele, os adesivos polímeros poderão representar uma ótima alternativa para o estancamento de sangue em ferimentos, especialmente os que geram grandes sangramentos. O adesivo poderia ser aplicado sobre o ferimento, colando os vasos rompidos e interrompendo o sangramento. Na chegada ao centro cirúrgico, o cirurgião aplicará o HIFU para mudar a propriedade do adesivo e ele se  descola do ferimento, possibilitando a realização da cirurgia reparativa.

Conheça a trajetória de um pesquisador da USP que trabalha pelo desenvolvimento de tecnologias para a saúde

Desde 2013, Chi Nan Pai atua como professor do Departamento de Engenharia Mecatrônica da Escola Politécnica da USP. Ele nasceu em Taiwan, e veio ao Brasil quando completou 8 anos.  Ele atribui a opção por seguir a carreira científica a um acaso, um “alinhamento de estrelas”. “Eu me formei primeiro em curso de medicina. Durante a graduação, percebi que a medicina ficou muito dependente da engenharia, mas o desenvolvimento de tecnologia nem sempre leva em consideração o que é bom para a medicina, e isso encarece demais os equipamentos. Então resolvi trabalhar no desenvolvimento de tecnologias para a saúde. As minhas primeiras tentativas para fazer pós-graduação em engenharia não foram bem-sucedidas, tanto no Brasil como no exterior, pois era um absurdo um médico querer fazer pós-graduação em engenharia. Acabei fazendo outra graduação, agora em engenharia mecatrônica, para poder seguir este caminho que escolhi”.

Após se tornar engenheiro, Chi Nan Pai foi realizar seu doutorado no Japão e, após o concluí-lo, resolveu voltar ao Brasil para “contribuir com o País que tanto me ajudou na vida”.

“Se eu fosse trabalhar numa empresa, poderia até criar alguns equipamentos para salvar vidas. Mas, se eu fosse para a universidade e formasse alunos com a mesma mentalidade que eu, o efeito se multiplicaria e muito mais pessoas seriam beneficiadas. E assim entrei para a carreira acadêmica. Como podem ver, não foram inspirações na vida, mas uma conjunção de fatores que me levou a este caminho”.

Sobre as horas vagas, no momento o professor busca não tê-las, para poder evoluir na carreira. “Depois vou voltar a estudar línguas e conhecer o mundo. Já viajei para seis continentes, mas ainda faltam muitos países e a Antártida para eu visitar”.

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